Amanhã, 25 de Abril, vai ter lugar na Assembleia da República mais uma cerimónia comemorativa do golpe de Estado militar ocorrido nessa data há 46 anos.
Corria o ano de 1974. Portugal era um país mediamente desenvolvido, pobre pelos padrões dos ricos, remediado pelo padrão dos pobres. Cerca de um terço do trabalho estava na agricultura, outro terço na indústria e um terço nos serviços. Membro das Nações Unidas, da NATO, da OCDE e da EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), entre muitas outras organizações, Portugal vinha a ser condenado de forma persistente nas Nações Unidas pela continuação da sua política colonial e pela guerra que travava em três frentes, em Angola, em Moçambique e na Guiné.
Quase metade do Orçamento do Estado era para a defesa, ou seja, para a guerra. Com uma taxa de apreensão fiscal muito baixa, das mais baixas da OCDE, pouco dinheiro sobraria para a política social do Estado, educação e saúde, mas o país quase não tinha dívida externa nem sabia o que fosse défice orçamental, tendo, aliás, fortes reservas em divisas e ouro, entre as mais elevadas do mundo, e uma taxa de crescimento económico da ordem dos 7 a 8% ao ano.
O 25 de Abril, sendo embora um golpe militar, propôs-se mudar isso. A política enunciada resumia-se nos célebres 3 D: democratizar, descolonizar, desenvolver.
Infelizmente, e contra muitas das expetativas criadas e esperanças legítimas da população, os comunistas tomaram o leme da revolução e desviaram-na para uma cruzada ideológica anticapitalista e ao serviço do comunismo internacional às ordens de Moscovo.
Pouco mais de um ano depois do 25 de Abril, em 11 de março, um golpe de Estado subvertia inteiramente a economia do país, levando à nacionalização ou intervenção de quase todas as indústrias e empresas de serviços com alguma dimensão e a uma reforma agrária destruidora da riqueza agrícola do país.
Os resultados da revolução não se fizeram esperar: afligida pela crise internacional iniciada em 1973, por uma descolonização caótica e excessivamente rápida e pelas nacionalizações, a economia portuguesa passou para um brutal défice externo da balança de pagamentos, um défice orçamental da ordem das dezenas de pontos percentuais, uma inflação galopante e uma queda da produção que, só em 1975 em relação a 74 (e note-se que o golpe de Estado foi em abril de 74, ou seja, na primeira metade do ano), foi de 15%.
É certo que com as eleições de 25 de abril de 1976, depois de aprovada pela Assembleia Constituinte uma Constituição que quase excluía o setor privado da economia, as coisas começaram a ganhar algum cunho institucional com a formação do primeiro Governo constitucional, tendo Mário Soares como primeiro-ministro.
Mas o arrumo constitucional não conseguiu travar a degradação acelerada da economia e Portugal entrou na senda dos pedidos de ajuda ao FMI, dos planos de austeridade e dos empréstimos de emergência concedidos por países amigos, entre os quais se destacavam os Estados Unidos.
Em 1977, ano em que o Governo de Mário Soares apresentou o seu pedido de adesão à então Comunidade Económica Europeia, Portugal estava a braços com mais uma tremenda crise de défice financeiro do Estado e uma inflação da ordem dos 40%, enquanto os salários tinham os aumentos limitados a 15%…
Com mais ou menos sobressaltos, o país seguiu assim até 1986, ano em que finalmente entramos, com a oposição determinada dos comunistas e da esquerda em geral, na Comunidade Europeia.
Desde então passámos a viver fixados no maná que nos entra pela porta dentro, não tendo tido o cuidado de fazer as reformas estruturais que nos permitissem, com eficiência e dignidade, sobreviver e singrar no âmbito da União Europeia. Esta visão mamífera da Europa, como lhe chama José Ribeiro e Castro, marcou e marca a nossa ambição europeia.
Depois de várias mais crises das contas públicas e do colapso e bancarrota do Governo socialista entre 2005 e 2011, depois de uma cura brutal de austeridade, necessária para repor a casa em ordem, tudo parecia encaminhar-se para a medíocre e habitual mediania quando nos desabou em cima esta crise do novo coronavírus.
É neste contexto que a classe política, encabeçada por um homem que não tem nada de estadista e calha presidir à Assembleia da República, decidiu celebrar pela 45.a vez a data do 25 de Abril. Não tenho nada contra o assinalar da data, mas quero realçar que se trata de uma pura encenação vazia de qualquer significado, num momento em que, por incrível ironia, os portugueses perderam a principal liberdade de qualquer pessoa, que é a de poder dispor livremente de si próprios, circular e deslocar-se, participar em cerimónias civis ou religiosas, nas festas de família ou até, tristemente, em funerais. Reclusos nas nossas próprias casas, teremos de assistir à vacuidade medíocre de uns discursos banais e sem qualquer significado, supostamente a celebrar a liberdade de que ninguém – tirando alguns políticos, pelos vistos – pode desfrutar.
Dizem que a democracia não está suspensa. Claro que não, ou não deve estar. Isso não impediu a França de adiar para quando for possível a segunda volta das eleições municipais, isso sim, um ato essencial da democracia, ou, em sentido contrário, de verberar a Polónia porque decidiu manter as eleições, apesar do confinamento.
O que, a meu ver, não ajuda nada a acreditar a democracia, nem a prestigiá-la, é a promoção de uma cerimónia que viola evidentemente as regras sobre confinamento que se impõem a todos, para celebrar uma coisa que devia ser celebrada diariamente, através da probidade, inteireza e serviço público exigível à classe política, do cumprimento das regras do Estado de direito que se impõem a todos e do respeito pelo sacrifício de quem neste momento vê, em muitos casos, a sua vida e futuro postos em causa.
Não será a intenção, acredito, mas esta missa do 25 de Abril escarnece de quem não pode sair de casa.
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”