Eram 12h e as câmaras das televisões e as máquinas fotográficas dos jornais focavam a fachada da pousada da juventude das Picoas para onde foi encaminhada a maioria dos infetados com covid-19 retirados de uma pensão da Rua Morais Soares. De repente, uma persiana subiu e abriu-se uma janela. Lá de dentro saiu a mão de um dos migrantes segurando um pequeno pacote de leite; do outro lado do vidro viu-se um dedo indicador em riste. Apenas recebera um pacote de leite, era provavelmente a mensagem que aquele homem queria passar para o exterior. Fonte da Proteção Civil disse, porém, ao i que tudo foi acautelado, incluindo a alimentação, e lembrou até os cuidados que foram tidos para respeitar a religião dos doentes.
Poucas horas depois – e por entre queixas dos estrangeiros de pouca informação por parte das autoridades – soube-se que tanto os 138 infetados como os 6 homens cujos resultados deram inconclusivo seriam deslocados para a base aérea da Ota.
Ao i, fonte ligada à Proteção Civil explicou que na base desta decisão esteve o facto de a concentração de tantas pessoas infetadas no centro da cidade – a pousada da juventude onde ficaram temporariamente era nas Picoas – representar um problema de saúde pública e ainda as condições da base aérea, que já estava preparada para receber doentes com covid-19.
Esta operação, que pressupôs também o transporte dos migrantes entre as Picoas e a Ota, foi coordenada pelo Ministério da Defesa Nacional, pelo Ministério da Administração Interna e pela Câmara Municipal de Lisboa – que, questionada ontem pelo i sobre quais as medidas e preocupações com hostels como este da Morais Soares, com várias pessoas a dormir no mesmo quarto em beliches, não enviou qualquer resposta.
Quanto à alimentação dos estrangeiros, uma fonte da Proteção Civil municipal esclareceu apenas que no dia em que foram retirados do alojamento, domingo, estes tiveram direito a três refeições, sendo que nenhuma delas continha carne de porco, uma vez que na sua maioria são muçulmanos.
Ontem a transferência para a base aérea da Ota foi anunciada ao início da tarde. A viagem que pressupunha o acompanhamento da PSP no percurso e da GNR, que tem a competência territorial junto à base aérea, acabou por se atrasar mais do que o previsto.
Junta passa a bola para a CML e alerta para os sem-abrigo Margarida Martins, presidente da Junta de Freguesia de Arroios, disse ontem ao i que seria fundamental mapear os hostels que estão numa situação de sobrelotação – recorde-se que esta unidade da rua Morais Soares albergava 200 pessoas em 40 quartos –, lembrando que esse trabalho não cabe às juntas.
“Não faz parte das competências da junta de freguesia nem sequer dispõe esta junta do registo de hostels/pensões existentes. Esse registo é feito junto da Câmara Municipal”, explicou Margarida Martins, lembrando as competências da autarquia.
E sublinha que sempre que a junta tomou conhecimento de situações anómalas tomou medidas: “A junta de freguesia apenas pode ter conhecimento de tais situações, sejam estrangeiros sejam nacionais, sublinhe-se, através de denúncias que nos chegam, atendendo a que não é da sua competência fiscalizar estes estabelecimentos. Assim, sempre que tomamos conhecimento destas situações, são encaminhadas para a Câmara Municipal, para a Polícia Municipal e para a ASAE”.
A presidente da junta explicou também que, “não obstante, tendo já sido prestado apoio a refugiados na sequência de situações gravíssimas, que envolviam, entre outras, a sobrelotação de pensões na freguesia, foram tais situações sinalizadas junto do Centro Português para os Refugiados, Alto Comissariado para as Migrações e Câmara Municipal (Direitos Sociais)”. Não esclareceu, porém, se este hostel fora algum desses casos sinalizados.
A terminar, Margarida Martins insistiu na necessidade de fiscalização e de medidas de proteção dos sem-abrigo, deixando claro que “não cabe à junta de freguesia garantir a inexistência de riscos de contaminação”: “A desinfeção do espaço está a cargo das autoridades públicas de saúde e, neste caso, foi levada a cabo pela CML. Da nossa parte, exigimos, como sempre fizemos, a fiscalização dos espaços, a par da tomada de medidas que garantam a segurança de todos, alertando ainda para a total falta de ação do Pelouro dos Direitos Sociais quanto às pessoas em situação de sem abrigo que continuam sujeitas a estar na rua todo o dia e a estar horas numa fila à espera de comida”.
Vereador da oposição vai exigir esclarecimentos João Pedro Costa, vereador do PSD na Câmara de Lisboa, quer saber quantos hostels existem na capital descumprindo as regras de distanciamento social.
Ao i, o vereador explicou que “a Câmara tem o registo das unidades hoteleiras e que a grande maioria está fechada”, adiantando não ter “conhecimento de quantos hostels estão a funcionar hoje, nem qual a ocupação dos quartos ou camaratas”.
“Vou perguntar à Câmara quantos situações idênticas a esta existem na cidade e em que circunstâncias as pessoas estão alojadas”, disse ao i, acrescentando que é fundamental “perceber que há um conjunto de unidades hoteleiras que têm uma forma de pernoitar que implicam uma maior proximidade entre os hospedes”. “Cabe-nos é nesta situação perceber que o problema não são só os lares”, afirmou ainda, recordando que hoje em qualquer estabelecimento e até na Assembleia da República se exige o distanciamento social: “Aqui há claramente uma violação da regra do afastamento social e quero saber quantos mais hostels há nesta situação”.