Pierre Louÿs. O íntimo terror do moralista

Pierre Louÿs. O íntimo terror do moralista


Escrito no início do séc. XX, Manual de Civilidade para Meninas, do francês Pierre Louÿs, conserva ainda hoje aquele riso que faz o terror de qualquer moralista.


Há certas obras que libertam de si um riso de tal forma descontrolado que parecem imunes à passagem do tempo, por mais que o pó se acumule sobre elas. É o que acontece com uma pequena obra de Pierre Louÿs que já tinha sido editada entre nós, pela Fenda, e que reaparece agora com a VS Editor: Manual de Civilidade para Meninas. Com uma capa inexpressiva, que não deixa adivinhar o teor deste manual que é, na realidade, uma caricatura dos livros de moral de inícios de século XX, com uma tradução cuidada da Júlio Henriques, que assina igualmente o prefácio (desde a conjugação dos verbos à utilização de certas expressões, tudo concorre para um travo antigo, que é aquilo que se pede num livro destes), este manual situa-se naquele limite em que a moral encontra o seu contrário – como se sabe, ninguém melhor que um moralista consegue sonhar e imaginar as mais inconcebíveis perversões, como se em cada padre se escondesse um pequeno perverso e, em cada perverso, um padre em potência. 

Nascido em 1870 na Bélgica, morrendo em Paris em 1935, Pierre Louÿs não foi, certamente, um moralista; bem pelo contrário, parece haver aquela continuidade entre a vida e a escrita que faz com que ambas se iluminem mutuamente, ao ponto de na sua correspondência se encontrarem descrições detalhadas da anatomia das mulheres com quem dormiu e das diversas posições sexuais experimentadas. Com o romance Afrodite de 1896 (publicado entre nós pela já extinta ou moribunda Guimarães Editores) Louÿs conhece um sucesso súbito, que rapidamente contraria, ao julgar-se discípulo de Mallarmé – no entanto, o seu grande legado não foi nem este romance nem a poesia que escreveu, mas parece ter sido a revista La Conque, que edita e onde publica André Gide e Paul Valéry, amigo e correspondente com quem se incompatibiliza a partir de 1920. Conjugando as duas grandes paixões de Louÿs, Afrodite tem, por um lado, essa referência clássica, que não anda longe deste manual e que nunca deixou estar presente na vida do autor belga – como se fosse uma personagem saída do The Last of the Valerii de Henry James, Louÿs sacrificou a sua vida no altar de uma antiguidade clássica imaginária e pessoal, cheia de ninfas e de daemones – e, por outro, o lado erótico, a “paixão antipuritana”, como lhe chama Júlio Henriques, que também se encontra presente de forma pronunciada neste Manual de Civilidade para Meninas.

Escrito na instável fronteira em que do outro lado se encontra o pornográfico (mas estamos bastante longe de qualquer pornografia, que não tolera qualquer forma de ambiguidade ou de camadas de sentido), este pequeno texto ainda hoje conserva, como um tesouro, aquela capacidade que o riso tem de abalar, de nos sacudir por todos os lados. Há, certamente, passagens cujo escândalo, mesmo hoje, se encontra à altura da infâmia de Marquês de Sade, de Henry Miller ou de Bataille – mesmo que em Louÿs não encontremos essa relação maníaca à lei moral que transforma, aqui e ali, os escritos do divino marquês em exercícios monótonos. Mas o mais interessante, no entanto, não é o escândalo que ainda hoje é capaz de produzir em mentes cujo segredo é a secreta perversidade que alimentam – é esta proximidade, em última análise, que os assusta – ou mesmo o mau gosto ou a arbitrariedade que, em Louÿs, não existe, mas a estreita relação entre regra social, reafirmada em todos os momentos, e a transgressão, que acompanha aquela em todos os momentos.

“Se antes de irdes comungar chupardes um cavalheiro, sobretudo evitai engolir o esperma, pois desse modo deixaríeis de ficar em jejum, como deveis” 

É uma pequena brincadeira, uma caricatura, um riso em tom baixo e contínuo. Não se trata, de facto, daquela infâmia ou daquelas lendas negras que os grandes transgressores, os grandes imoralistas, instauram, aquela aura que o seu nome maldito cria, esses seres que parecem cometer todas as perversidades possíveis e imagináveis numa batalha sem fim contra a lei moral. Mas também não se trata daquela infâmia que um texto famoso do filósofo Michel Foucault tornou célebre, o “frade apóstata, sedicioso capaz dos maiores crimes, ateu até mais não poder ser”, por exemplo, essa colecção de seres anónimos, pérfidos e cheios de violência, que um qualquer azar fez com que se cruzassem com os mecanismos do poder, chegando até nós vindos dos escritos bolorentos dos arquivos. Pelo contrário, o que se encontra em causa neste escrito de Louÿs são aquelas regras de trato social que impedem que o mundo se desmorone, e que eram particularmente apertadas na época do autor, e a forma como ele as afirma fazendo-as explodir por todos os lados, mostrando, no negativo dessas regras, um desejo indómito, irrefreável. Numa secção significativamente intitulada “Com o senhor Presidente da República” lemos: 

“Se de livre vontade com ele vos deitardes, e se ele vos rogar que lhe façais chichi na boca, não deveis objetar-lhe que um tal acto seria indigno do respeito que lhe deveis. Melhor do que vós conhece ele o protocolo”

Mas talvez o momento maior deste Manual de Civilidade para Meninas seja a última secção do livro, intitulado “Não digais… dizei…”. Sob a forma de conselhos relativamente à linguagem que se deve utilizar, de interditos quando ao que é passível ou não de ser dito em sociedade, é a própria linguagem que treme, é este riso imenso que invade tudo e vem abalar toda e qualquer palavra. Valeria a pena citar na sua totalidade esta última secção. Deixemos, no entanto, apenas algumas passagens a título de exemplo:

“Não digais: «vim-me como uma louca.» Dizei: «sinto-me um pouco cansada»
Não digais: «gosto mais da língua do que da piça.» Dizei: «só gosto dos prazeres delicados.»
Não digais: «Ela vem-se como uma égua a mijar.» Dizei: «É uma exaltada.»
Não digais: «Quando se lhe mostra uma piça, fica logo zangada.» Dizei: «É uma original.»
Não digais: «É uma rapariga que se masturba até desfalecer.» Dizei: «É uma sentimental.»
Não digais: «Ele veio-se-me na cara e eu na dele.» Dizei: «Trocámos algumas impressões»”

Escrito numa época profundamente hipócrita a nível sexual – Stefan Zweig, em O Mundo de Ontem, fornece-nos um quadro pouco simpático, apesar de apenas se referir a Viena –, onde o mais fervoroso moralismo tinha, como consequência, a multiplicação da prostituição e uma linguagem carregada de interditos, Manual de Civilidade para Meninas vem colocar em destaque a alegre manhã do desejo e conferir à mulher aquilo que, à altura, parecia impossível: a afirmação do desejo e da sexualidade, e de um desejo e de uma sexualidade sem limites, irrefreável, sem cair na figura da histérica (esta afirmação ainda hoje é olhada com desconfiança em diversos lugares). Ou, por outro lado – mas não é um livro destes que tem de decidir sobre esta questão –, mostrar que, interior ao mais fervoroso moralismo, se escondem todas as perversidades possíveis, como se a perversidade fosse a criação do mais rigoroso moralista.

Uma última nota relativamente à leitura deste manual. Como facilmente se percebe face ao teor deste livro de Pierre Louÿs, este escrito faz parte de uma tradição que pede a oralidade. Ele não deve ser lido, portanto, segundo as modalidades já clássicas do leitor: sozinho, de si para si, num qualquer local isolado ou recatado. Pelo contrário, só lido em voz alta, de preferência em conjunto, será possível saborear esta linguagem transgressora em todas as suas modalidades, este riso imenso que se costura no avesso de qualquer moral.