O mundo parou ao longo destas últimas semanas e seguramente irá mudar para sempre. À hora a que escrevo já são 180 países com casos positivos da COVID-19, a doença que é provocada pela infeção pelo novo coronavírus SARS-CoV-2. Diz, ainda sobre números, a conceituada Universidade de Johns Hopkins, através do seu meritório Coronavirus Resource Center, que já temos mais de 926 mil casos e 46 mil mortos dentro dos perto de 8 mil milhões de habitantes do nosso planeta nesta manhã de 2 de março de 2020.
Estes números, curvas epidemiológicas e nomenclaturas que já todos começamos a conhecer “de cor e salteado” porque nos entram por casa a dentro a cada bloco noticiário de hora a hora, ou pelas redes sociais são reflexo do que mudará para sempre o mundo em que nos habituámos a viver.
A vida como era até ao período pré-pandémico perdeu-se em parte. Ficou encerrado esse capítulo civilizacional no nosso livro de História da humanidade e, quando recuperarmos a liberdade habitual de circular pelas ruas, ir às praias e ver o mar, ou seja, a plenitude da nossa nova página de vida social, iremos ter um Mundo que mudou.
Neste período de isolamento, nas nossas casas, perdemos (e só agora damos valor, talvez) a proximidade diária com os nossos amigos e familiares, mas não perdemos proximidade ao volume de trabalho que o emprego nos dá diariamente. Não afirmo que se trabalhe mais ou menos, haverá casos e casos, mas há trabalho diário da maioria das pessoas que estão confinadas às quatro paredes da sua habitação. É aqui que reside um dos focos que nos liga a todos agora: O Teletrabalho.
Até 2020, claramente distante da maioria dos trabalhadores, a prática do teletrabalho reunia consenso positivo dos trabalhadores, empresários e ambientalistas. Será que esta crise pandémica provocada pela Covid-19 veio revolucionar o mercado laboral? A tendência dos mercados evolui no sentido positivo da clara emancipação desta dinâmica laboral à distância que nos permite trabalhar a partir do nosso escritório de casa ou de qualquer parte do mundo.
Esta prática a que, por força destas atuais circunstâncias, claro, parte significativa dos portugueses tenta hoje adaptar-se não é de todo uma novidade. Aliás, é na década de 70, quando o mundo atravessava por uma das crises petrolíferas que surge o primeiro exemplo de trabalho à distância. Nesse tempo, houve a notória preocupação das chefias associada aos gastos com deslocações para o emprego. Em virtude disso, a pensar na rentabilidade financeira provocada pelas guerra em torno das matérias fosseis, várias empresas deram instruções para que determinadas funções passassem a ser atribuídas para a execução no próprio domicílio de cada colaborador. Foi bem antes do ano de hoje.
Mas, bem antes desse “antes de hoje”, precisamente um século antes, em registo distinto daquele que hoje consideramos como “trabalho remoto” ou “trabalho à distância”, há a curiosa prova desta prática com os telégrafos. Em 1843, através do ainda hoje popular sistema de Morse para transmissão de mensagens, o Congresso Americano financiou a primeira linha de telégrafo regular ao longo da ferrovia entre Washington e Baltimore. Onde entra o trabalho à distância? O controlo destas unidades remotas era feito por telégrafo, era assim que se assegurava a gestão e monitorização de recursos e mão de obra remotamente. Falamos de 1843 e 1857. Não é de hoje. É mesmo bem antes de 2020.
Chegámos então a 2020. E hoje estamos na globalidade a servir de cobaias, de case-study em tempo real, para o trabalho remoto.
E, quando já temos vários estudos académicos, apresentados nas últimas décadas, que demonstravam um certo conservadorismo empresarial como sendo o principal entrave à prática do teletrabalho em Portugal, surge uma pandemia para acabar com o bloqueio laboral.
Mais recentemente, através dos dados do independente Eurostat, divulgados em 2019, podemos ver que a percentagem de pessoas com emprego entre os 15 e os 64 anos na União Europeia (UE) que habitualmente trabalham em casa era apenas de 5% em 2017. Este valor foi mais elevado na Holanda (13,7%), seguida pelo Luxemburgo (12,7%) e pela Finlândia (12,3%). No polo oposto, na UE, esta percentagem é bem menor na Bulgária (0,3%) e na Roménia (0,4%).
Nesta estatística europeia, Portugal surge perto da média, com aproximadamente 5% de pessoas que habitualmente trabalham a partir de casa. Este valor pode iludir. Portugal já teve uma maior percentagem de trabalhadores a utilizarem esta modalidade. Poderemos, correta ou erradamente, assumir que foi em virtude da crise económica que várias empresas permitiram que esta taxa fosse superior à de hoje, por exemplo nos anos de 2015 ou 2014. Com a Covid-19 a empurrar-nos para casa, seguramente em 2020 será bem maior e, sem dúvidas, o ano com maior taxa de trabalhadores a partir de casa.
A título de curiosidade, recentemente, a Associação Empresarial de Portugal (AEP), elaborou (ainda antes da Pandemia) um documento de reflexão, denominado de “Estratégia para o Crescimento”, onde apontava já para as novas formas de organização do trabalho. Esta estratégia era assumidamente consequente da revolução tecnológica que hoje vivemos, e o seu maior exemplo era precisamente o teletrabalho.
Há várias vantagens e desvantagens que, atualmente, milhares de portugueses já podem vaticinar por experiência própria.
Temos de saber (e hoje milhões de pessoas no mundo sabem) que a autodisciplina e a motivação são fundamentais para conseguirmos fazer de nossa casa o escritório perfeito.
É igualmente verdade que o nível de concentração poderá ser maior em casa, em virtude de ter menos distrações (excluindo a exceção que hoje ocorre – via Covid-19 – em virtude do forçoso confinamento com muitas famílias a terem de trabalhar com os seus filhos por perto a pedirem seguramente várias brincadeiras familiares), mas por outro lado também não é menos real que é dentro do seio da empresa que se vive, sente e ouve a mensagem da companhia e as ideias que fervilham nos corredores e openspaces.
As vantagens, numa análise simplista, são substanciais: Para o empregador permite que exista alguma redução de custos fixos, como os gastos com a eletricidade e água. Já para o trabalhador irá desde logo poupar nas deslocações, eliminando os chamados movimentos pendulares entre casa-trabalho-casa.
Com esse tempo a menos de deslocação e, inversamente, a mais de concentração será justo dizer que o teletrabalho otimiza o tempo ativo habitualmente gasto. Se pensarmos nas maiores cidades portuguesas, como Lisboa ou Porto, este “tempo gasto” poderá equivaler a horas de poupança para o trabalhador face ao trânsito.
É inevitável não referir como vantagem a qualidade de vida familiar e pessoal. Hoje é fundamental cada minuto dedicado à família, vale mais porque é um bem precioso mais escasso e que tende a piorar nestas últimas gerações com um claro exacerbar de trabalho (em tempo, não digo qualidade) excessivo. Estar em casa permitirá estar em família, ver os filhos crescer, criar rotinas saudáveis ao nível da alimentação e, porque também é importante, conciliar facilmente a vida de cada um com hábitos de exercício físico regulares.
Há uma desvantagem grande no teletrabalho que é impossível contrariar.
O ser humano nasceu e evoluiu a viver em comunidade. Em grupo. A redução do contacto pessoal no ambiente de trabalho é um grande senão nesta matéria. Naturalmente que hoje, seja pelo Zoom ou pelo Microsoft Teams (haverá muitos que neste momento se riem por saberem que é o seu dia-a-dia laboral de hoje), têm a mensagem diária ou semanal dos seus diretores, videoconferências de equipa, relatórios mensais dos CEO e CFO’s que, obviamente, quase simulam a vida como se estivéssemos nos nossos escritórios a partilhar o café matinal na presença dos nossos colegas. Mas não é a mesma coisa. Nunca será. A proximidade física não passa a existir.
Mas há outra matéria, atualmente, em foco no debate mundial, que não podemos esquecer: o impacto ambiental.
Comecemos então por Lisboa e pelo Porto, porque são as duas maiores Cidades nacionais, com um benefício evidente da implementação desta medida de forma estruturada e em crescente adesão. Podemos assumir desde já que as cidades enfrentarão uma menor pressão sobre a rede de transportes públicos e menor tráfego rodoviário.
Se pensarmos a nível macro, tendo por base a consequente eliminação da necessidade de ter todas as pessoas nas imediações das cidades ou nos seus arredores, antecipamos de imediato uma diminuição da pressão imobiliária dessas zonas e, ao mesmo tempo, algum incentivo económico de zonas tradicionalmente menos populosas. Correto?
Vários estudos e case-studies sugerem que os programas de teletrabalho têm o potencial de reduzir os custos de energia, obtendo um resultado favorável para a sociedade. Naturalmente, espera-se, haverá uma consequência direta de uma menor utilização de transportes, o que irá originar a redução das emissões de CO2.
Para os mais céticos, poderão ler a interessante análise de 2007 do The International Journal of Life Cycle Assessment onde o artigo cujo título é “External air pollution costs of telework” deixa várias vezes expostas estas vantagens anteriormente ditas. Deste estudo fica um senão: O alerta para a necessidade de uma avaliação rigorosa perante o previsível aumento de gastos energéticos em casa. Aliás, em Portugal, já é uma evidência este aumento de gastos segundo a imprensa escrita desta semana.
Em suma, vivemos uma nova fase a que nos teremos de habituar todos. Haverá sempre receios, como o de haver cortes no subsídio de refeição com um aumento do teletrabalho, que à data de hoje os sindicatos portugueses alertam, como também haverá esperanças positivas de termos em casa todos os acessos e processos que temos num escritório da nossa empresa.
A vida mudará.
As Universidades e a forma com que dão aulas irá mudar. As conferências irão mudar. Os espaços noticiosos poderão cada vez mais utilizar ferramentas de comunicação online ao invés da presença para espaços de 1 a 2 minutos. As instituições e corporações irão adotar estes modelos de estado de emergência para reuniões quotidianas e para aproximar por vídeo quem se tem excluído de participar civicamente nas suas assembleias. As forças políticas vão adaptar-se e criar maior proximidade entre os dirigentes nacionais e as estruturas locais. Pelo menos, sendo otimista, assim espero que seja.
Entrámos, definitivamente, num novo capítulo desta sociedade de pós-revolução das ferramentas de comunicação e das tecnologias da informação. Saibamos extrair as suas vantagens e evoluir.
Carlos Gouveia Martins