Maurício Camilo. “Obviamente há desilusão. Estivemos um ano e meio a preparar esta viagem”

Maurício Camilo. “Obviamente há desilusão. Estivemos um ano e meio a preparar esta viagem”


Com mais de dez mil milhas percorridas, a Sagres encontra-se neste momento ao largo da costa atlântica de África. A ordem de regresso, explica o comandante do navio-escola, foi recebida com alguma desilusão, mas também com naturalidade.


Foi sem surpresa que, nas vésperas de chegar à Cidade do Cabo, Maurício Camilo recebeu do almirante Mendes Calado, chefe do Estado-Maior da Armada, a ordem de regresso da Sagres a Lisboa. A situação era “inevitável”, dadas as dificuldades que estavam já a encontrar nalguns portos. O navio-escola interrompe assim a viagem de circum-navegação iniciada a 5 de janeiro e destinada a celebrar a primeira circum-navegação do globo, empreendida há 500 anos por Fernão de Magalhães. O comandante da Sagres falou com o i através do telefone-satélite instalado no seu camarote.

Imagino que esta decisão tenha caído como um balde de água fria, não?

Eu diria que não foi uma grande surpresa, em função daquilo que íamos sabendo acerca do que se estava passar no país e no mundo, e das dificuldades que começámos a ter com a estadia ou com as escalas nos portos seguintes, a nível de logística. Enfim, foi com alguma tristeza que fomos informados da decisão, mas não foi uma surpresa.

Qual é o sentimento entre a tripulação?

O sentimento é que a situação era um pouco inevitável e, portanto, mudámos de missão. A nossa missão agora – obviamente sob a minha responsabilidade, mas a missão é de todos – é chegarmos a Lisboa o mais rápido e o mais saudáveis possível. Fizemos o que estava ao nosso alcance para que nada acontecesse nestas horas que parámos para reabastecer na Cidade do Cabo e estamos a navegar rumo a Lisboa. Na primeira quinzena de maio, lá chegaremos.

Ainda vão fazer paragens?

Não sei. Está prevista uma paragem para reabastecer em Cabo Verde, é o planeado e é o mais normal. Se as condições forem muito, muito favoráveis, podemos eventualmente nem parar em Cabo Verde. Mas em princípio faremos uma paragem rápida em Cabo Verde para reabastecimento e depois seguimos para Lisboa.

Quando fez o plano de viagem, alguma contemplou a possibilidade de um regresso antecipado?

Não, de maneira nenhuma. Quando saímos de Lisboa, a 5 de janeiro, nem sequer se ouvia falar do coronavírus. Na Europa não havia casos nenhuns. O tema começou a ser falado na tirada entre Cabo Verde e o Rio de Janeiro, em finais de janeiro, início de fevereiro. Obviamente, não podia haver nenhum plano de contingência para uma coisa que não sabíamos que existia.

Não me referia necessariamente ao coronavírus, mas a qualquer eventualidade que pudesse surgir e que acionasse um plano B.

Não, não havia plano B, o regresso a Lisboa era a 10 de janeiro de 2021, após terminar a viagem.

Como estava a correr a missão até aqui?

Muito bem. Nos cinco portos que já tínhamos feito, as coisas estavam, de facto, a correr muito bem, com muito impacto. Enfim, foi pena não poder ter continuado, mas é uma decisão absolutamente normal em função do contexto.

Houve algum momento especial que possa assinalar?

Não consigo destacar nenhum momento especial porque os programas nos portos acabam por ter um figurino mais ou menos comum – com cenários diferentes e com pessoas diferentes. Mas é difícil dizer que há um ponto alto porque em todos os portos tivemos muito impacto, quer mediático quer do que foi possível verificar das pessoas que nos visitaram e que participaram nos eventos connosco.

E em termos de navegação e de condições climatéricas, como tem corrido?

Já percorremos cerca de 10 mil milhas, cerca de 18 mil quilómetros, no Atlântico, e apanhámos um pouco de tudo: bom tempo, mau tempo, frio, calor – felizmente, nada de inesperado, e cumprimos sempre rigorosamente o que estava planeado.

O momento de comunicar à tripulação a notícia do regresso foi difícil? Sentiu alguma desilusão da parte deles?

Obviamente que há desilusão. A guarnição é, na sua esmagadora maioria, voluntária e estava com muita expetativa nesta viagem. Estivemos cerca de um ano e meio a preparar a viagem – a fazer a preparação do navio, mas também a preparação a nível pessoal, porque cada um teve de adaptar a sua vida à ausência de um ano. Chegando esta altura em que se diz que a viagem não pode avançar e temos de fazer o regresso a Lisboa, é natural que as pessoas tenham ficado, de alguma forma, tristes. Mas essa sensação rapidamente é ultrapassada pela necessidade de nos focarmos em chegar bem a Lisboa. Por outro lado, essa comunicação acabou por ser facilitada porque era algo que nos últimos 15 dias já se esperava que pudesse acontecer. Já se dizia que os Jogos Olímpicos iam ser cancelados e essa era uma das grandes razões para esta viagem. A situação em todo o mundo era cada vez mais complicada ao nível da propagação do coronavírus, muitos países estavam a colocar dificuldades na atracação do navio e no próprio reabastecimento do navio, portanto percebeu-se que ia ser insustentável continuar a viagem nos moldes em que estava.

Se por acaso fosse decidido continuar, iam encontrar muitas dificuldades?

Isso nem se coloca. Não estamos a continuar porque, realmente, as dificuldades eram de tal forma grandes que não era sustentável. A decisão é absolutamente lógica e racional. Desde que largámos de Buenos Aires houve uma evolução negativa muito rápida e começou a perceber-se que ia ser inevitável.

No início, quando começaram a aparecer as notícias e se viu a ameaça a crescer, ainda tinham esperança de poderem prosseguir viagem?

Como lhe disse, só começámos a perceber que havia uma situação mais grave a partir de finais de janeiro, início de fevereiro. Mas não tínhamos a noção – ninguém tinha na altura – de qual seria a rapidez da propagação e de que países seriam afetados, etc. Estando a navegar, ainda mais difícil é fazer esse tipo de análises e de previsões. Fomos acompanhando as notícias e percebendo que a situação estava a tornar-se grave.

Acompanham as notícias na televisão ou através da internet, seja no telefone, seja no computador?

Não temos televisão quando estamos a navegar, por isso recebemos a informação através de vários suportes – sim, da internet, mas também de outras fontes, como a informação que é passada pela Marinha para os navios que estão em missão.

Onde se encontram neste momento?

Neste momento estamos a navegar com boas condições de vento, a boa velocidade, na costa da Namíbia. Agora vai ser o avançar dos dias, olhando para a meteorologia e tentando encontrar o caminho que nos permita andar o mais rápido possível em segurança.