Entrou para o Banco Alimentar contra a Fome como voluntária há já 26 anos e hoje, aos 60, Isabel Jonet conta ao i que nunca tinha visto situações tão complexas como as que têm chegado nos últimos dias. A presidente do Banco Alimentar contra a Fome de Lisboa e da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares explica, nesta entrevista, o porquê de os casos mais difíceis estarem em cidades como Lisboa, Setúbal e Porto. Diz ainda esperar que quando tudo isto acabar, as pessoas não reencontrem o frenesi de vida em que viviam: “Tantas vezes, nós que vivemos no litoral e, por isso, somos privilegiados, passávamos ao lado do mar e não tínhamos tempo para ver o nascer do sol, o pôr-do-sol ou até a beleza de uma gaivota”.
Como estão a ser estes últimos dias, desde que foi declarado o estado de emergência?
Aquilo que sentimos aqui no Banco Alimentar Contra a Fome foi um acréscimo muito, muito substancial de pedidos de apoio por parte de pessoas com baixos recursos económicos e que ficaram em situações muito difíceis, ou porque perderam o emprego, ou porque a resposta social que habitualmente as ajudava encerrou. E então sentimos que de alguma maneira era preciso conhecer o que já existia e permanecia em funcionamento mas, por outro lado, também que aquilo que existia trabalhasse em rede e que não ficassem por ajudar as pessoas que têm necessidade e não estavam a conseguir ter apoio.
E o que foi feito?
Lançámos a rede de emergência alimentar, que precisamente pretende congregar o que já existe com as juntas de freguesia e as câmaras municipais, para nos ajudar a organizar e para que ninguém fique por ajudar.
Mas consegue mensurar esse aumento de procura? Trata-se de um incremento significativo?
Consigo. Posso dizer-lhe que hoje estou a ver algumas situações pela primeira vez em muitos anos – estou há 26 no Banco Alimentar contra a Fome. São situações muito difíceis aquelas que se vivem nas famílias hoje em dia. Eu acho que hoje posso dizer que em alguns lugares de Portugal há pessoas que passam fome. E passam fome porque deixaram de ter as respostas que habitualmente as ajudavam.
Mas mesmo nos grandes polos urbanos, como Lisboa, Porto e Coimbra?
Digo-lhe que as situações mais difíceis nesta altura são em Lisboa, Setúbal e Porto, porque nestes sítios houve muitas pessoas que ficaram sem emprego – pessoas que eram prestadoras de serviços ou que trabalhavam por conta própria em pequenos cabeleireiros ou mesmo empregados de mesa em cafés e em restaurantes e que ficaram sem emprego. Não é tanto as indústrias que tenham parado ou abrandado, mas sim o pequeno comércio – cabeleireiros, esteticistas, etc. – e, nomeadamente, quando se trata de pessoas que não têm contrato de trabalho.
Que casos mais a sensibilizaram nestes últimos dias?
São tantos, tantos casos que não pode pôr na sua ideia. Tantos. Situações que recebemos aqui de pessoas mais velhas que tinham apoio domiciliário em casa e que a única ajuda que tinham era aquela, uma vez por semana, quando lá ia o saco de alimentos – ou diariamente com o apoio domiciliário. E como fecharam esses apoios, essas pessoas deixaram de ter contacto e, portanto, deixaram de pedir comida._Temos casos desses.
No caso de pessoas que perderam o trabalho, como têm abordado o Banco Alimentar contra a Fome?
Muitas pessoas têm telefonado, temos aqui várias pessoas só para atender o telefone, mas nós temos pedido sempre para que encaminhem a sua situação através do link, um formulário online da rede de emergência alimentar que está disponível no site. Depois de preenchido o formulário, que é bastante completo, cada situação é encaminhada para as juntas de freguesia ou para as instituições de solidariedade da zona onde a pessoa reside. Nós também não queremos que as pessoas vão todas para as ruas para ir buscar os alimentos, tem de ser tudo muito próximo – para evitar deslocações e o contágio.
E o Banco Alimentar contra a Fome tem recebido mais alimentos?
Não, isso não. Manteve aquilo que é o abastecimento regular. Mas teve uma sobrecarga enorme dos pedidos e é por isso que temos de otimizar as entregas às instituições para que levem de uma forma mais eficaz às áreas de quem precisa. Sem se perder o amor. Em tempos como os que estamos a viver – em que há um grande isolamento social e as pessoas estão mais em casa e acabam por passar muito tempo nas redes sociais, recebendo muitas notícias – há sempre quem se resguarde mais e esqueça que há pessoas que não têm quem as ajude.
Tem receio de uma situação de rotura por parte do Banco Alimentar?
Eu sou uma mulher de fé e, portanto, não acredito que havendo necessidade de ajuda e de apoios, essa ajuda não chegue.
Muitas instituições que ajudam os sem-abrigo também suspenderam
as suas ações…
Isso fechou, sim, muitas fecharam…
Como acha que serão os meses que se seguirão a esta pandemia?
Diria que vão ser meses muito, muito difíceis, até porque a situação económica vai apertar, muitas famílias vão ter situações complicadas. Mas quando pudermos passear, acho que as pessoas vão apreciar coisas mais pequeninas que tinham deixado de ver. Tantas vezes, nós que vivemos no litoral e, por isso, somos privilegiados, passávamos ao lado do mar e não tínhamos tempo para ver o nascer do sol, o pôr-do-sol ou até a beleza de uma gaivota. Acho que depois disto, as pessoas vão ter mais tempo para apreciar estas coisas, até porque estiveram privadas disso. Só espero é que também haja capacidade para não reencontrarmos o frenesi de vida em que vivíamos e que muitas vezes nos fazia viver num mundo que não é um mundo tão real. Tal como o mundo de hoje não é real, é estranho – estamos a ter a nossa vida perturbada por uma coisa que não vemos, que não sentimos.
E quanto ao lado económico, quando acha que será possível respirar de algum alívio?
Penso que passada esta pandemia ou, pelo menos, controlada, há que acautelar todos os impactos económicos que esta situação provocou – eu sou economista de formação e tenho um receio grande de que as consequências para a economia e para as situações financeiras de muitas famílias vão ser muito duras. Penso que as pessoas têm de encarar que durante uns bons meses, a vida não vai ser fácil e que realmente vai ser preciso ter fé para termos a certeza de que cada um de nós tem um importante papel a desempenhar na sociedade.
Já agora, como é economista de formação, pergunto-lhe: esta crise que se avizinha
será tão má ou pior que
a última crise?
Não sou capaz de antever isso, mas há muitos estudos de entidades que são especialistas em estudos económicos. O que lhe posso dizer é que não tenho dúvidas de que vai haver uma grave crise económica que vai afetar as famílias. Se essa crise vai ser melhor ou pior do que a crise que teve um começo no imobiliário e nos fundos, não sei. Só espero que não tenha as consequências e a dureza que teve para as pessoas mais idosas e para as pessoas mais carenciadas.
Acha que todas as medidas tomadas até agora pelo Governo e pelas autoridades de saúde têm sido as mais acertadas?
Penso que sim. Da minha perspetiva enquanto cidadã comum – porque não sou técnica de saúde pública, e para isso é que há os técnicos de saúde pública –, o que me parece é que tudo aquilo que tem sido feito tem sido antecipar para minorar as consequências de um pico abrupto de contágios. E, portanto, acho que tem sido tudo bem feito e que os portugueses têm sido exemplares no cumprimento das recomendações do Governo, não tendo havido ainda necessidade de obrigações ou sanções. E isso é muito, muito positivo.