Éric Vuillard. A literatura contra o hálito abjecto da História

Éric Vuillard. A literatura contra o hálito abjecto da História


Escritor e realizador de Lyon, em 2017, Éric Vuillard ganhou o Goncourt com o livro “A Ordem do Dia”, e há pouco chegou-nos a sua obra mais recente, uma vez mais uma narrativa histórica num género híbrido que vai mais longe que o ensaio mas dispensa a ficção. “A Guerra dos Pobres” é um panfleto…


Não deveria surpreender-nos, isto se reconhecêssemos, como parece ser o caso, os tão grandes males em que as nossas vidas assentam. Há alturas em que algo de muito doloroso parece justificar-se; alturas em que “é preciso que o mundo inteiro leve um bom abanão”. Falemos da peste como da guerra. As coisas estão tão mal, e mesmo assim não se pode dizer algo muito pior que o que disse certa vez um marquês provinciano: “De uma forma geral, tudo aquilo que se diga é igual ao litro.” Resta, portanto, elaborar para outros, levantar da pilha de factos uma lição que ressoe a outro nível, que comece por nos implicar pessoalmente. Não no sentido de nos dar ordens, mandar que façamos isto ou aquilo, simplesmente um fio que se disponha invulgarmente e que, ao ser puxado, dê corda a outras noções, e leve a que nos inspirem “as folhas verdes das árvores, os excrementos dos bichos”, alguma doença venérea que seja fácil contrair por estes dias, mas também as nuvens do céu, “o grande ricto do animal doente, a cortina que se rasga, a rajada de vento, a oficina, o trabalho rotineiro”… Antes de irmos mais directamente, à questão é importante enxotar e até correr com aqueles que por nada deste mundo se deixam inspirar. Por estes dias, o grande formigueiro das cidades começa a cessar, e pelo modo como olhamos às janelas nem parecemos jovens urbanos. Vamos procurar nos livros as paisagens de que necessitamos para respirar. É preciso que a linguagem não nos adormeça como de costume, não faça de nós leitores desses que vão num comboio gemendo de indiferença sobre o território que atravessa como se com a ponta do dedo riscássemos um mapa. Por agora, fomos devolvidos, e cada um sabe de si. Por uns tempos, seremos como ladrões de cerejas de galhos que se estendem por dentro da nossa enorme impaciência. Assim, o melhor é não ter pressa. Por estes dias, antes de irmos ao livro que agora importa, há esses autores que são especialmente dignos em momentos em que a história parece rir-se de si própria e de nós, tudo rima com tudo, “e os gonzos dos velhos pensamentos quebram-se na porta”. Os gestos comuns adquirem uma estranha semelhança com os gestos daquelas das figuras e personagens com um alcance absurdo, e poetas como Zbigniew Herbert, sabem introduzir esse elemento de ligação com o passado, “enquanto ela arranja o cabelo”: “Ela arranja o cabelo antes de se deitar/ e permanece em frente do espelho uma eternidade/ entre cada flexão do braço/ passam eras dos seus cabelos brotam silenciosamente/ soldados da segunda legião de Augusto Antoniano/ irmãos de armas de Rolando artilheiros de Verdun/ com os dedos ágeis/ segura a auréola na cabeça/ demorou tanto tempo/ que quando/ finalmente chegou até mim/ meneando as ancas/ o meu coração até aí tão dócil/ parou/ e na minha pele senti/ grosseiros grãos de sal”. A tradução é de Jorge Sousa Braga, que deu à antologia publicada pela Assírio o título: “Escolhido pelas estrelas”. O que nos fica num momento em que somos resgatados, tantas vezes contra a nossa vontade, às rotinas e vícios que quase nos sufocam, é a noção defendida por Herbert de que, se o passado não tem como residir na geografia do presente, resta à nossa imaginação criar um lugar para ele. E com isto, passamos a uma narrativa histórica espantosamente singular do escritor e cineasta francês Éric Vuillard, “A Guerra dos Pobres”. Se os vencedores confiam a cronistas que colhem o seu sustento da adulação e fazem o assentamento do que foi e como, se tantas vezes a História não passa de uma imensa teia de putrefacção, em que se mofa dos ânimos que sustentaram os grandes fracassos, das revoltas suprimidas e com as quais se perderam mundos, outras realidades e horizontes, se isto é certo, então Vuillard diz-nos que sobre esse “tesouro de distância e de delegação” ainda é possível estender a mão àqueles que caíram, tantas vezes atraiçoados, mortos por algum escudeiro depois de serem derrubados do cavalo, esse escudeiro que nem nome terá mas a cujo ouvido, naquela hora, “todos os reis da terra sopram o seu hálito maldito”. Face a isto, face aos grandes sofismas do poder, o autor diz-nos que “seria preciso escrever uma sua história gradual, subtil, infinitamente rocambolesca, mas envergonhada, com as suas mil dosagens de venenos, de mentiras proferidas, fabricadas, admitidas, cruas, repetidas, de preconceitos sinceros, de más consciências semi-reveladas, secretas, com todos os contorcionismos de que a alma é capaz”. “A Guerra dos Pobres” é um fabuloso exercício de insurreição, num registo falsamente sóbrio, deleitosamente poético, em que sobre a história parece voltar a correr sangue. Esse ulterior campo de batalha readquire aquele tremor antes de se selar um desfecho, ressuscita a sensação de temor perante aqueles cujos rastos se perderam “na corrente dos destinos vulgares”, mas que ameaçaram lançar o destino noutra direcção. Assim, recuando cinco séculos, Vuillard irá comprometer-se com os idealistas, esse bando dos exasperados, que “irrompem um belo dia da cabeça dos povos, como os fantasmas saem das paredes”. Este livro é obra que parece tocar uma harpa muito distante do arrepio musical que produz, mas, se não formos estafermos desses incapazes de se exaltarem por uma palavra viva, dessas que se dirigem a nós, mesmo que seja nos livros, mas arrastando o peso inteiro que um homem pode carregar para levar até ao fim, pulsando, o seu coração, então sentirá o que aqui nos é dito sobre a forma como Deus se nos dirige, “através da folhagem e das silhuetas dos sonhos”. Com este testemunho sedicioso, Vuillard estabelece uma genealogia de alguns revoltosos, personagens que foram passando a tocha e caindo, que provocaram fúrias dessas capazes das mais inesperadas sublevações, em que “os camponeses arrancam os juízes dos seus leitos, arrastam-nos para as praças, decapitam-nos”. E autor assiste regozijando-se, como se o meteorologista em estúdio, diante das previsões de um dilúvio, se pusesse a invocá-lo com um fervor vingativo: “Está um tempo magnífico”, diz-nos. “A multidão assiste, coberta de suor, anelante, nunca se viu tanta gente. O Tamisa resplandece, a água cintila, há bramidos que enchem a cidade, que transpõem as paredes.” Num momento em que a desigualdade desafia mesmo os períodos mais tenebrosos das relações feudais, Vuillard vai ao passado como quem ganhasse balanço para lançar uma acusação ferocíssima ao presente, e engrossa ecos, em francês, fala pela boca de John Wyclif (1328-1384), lembrando a indignação com que foi recebida a sua proposta de traduzir a Vulgata para o inglês, “uma língua de trapeiros e de velhos soldados”. “Hoje o menor denominador comum é dito em inglês, fala-se inglês em toda a parte, nas estações de caminho de ferro, nas grandes empresas e nos aeroportos, o inglês é a língua da mercadoria e a mercadoria, hoje, é Deus”. Ou seja, as coisas deram a volta, o excesso transpôs-se habilmente de um lado para o outro, prosseguindo o seu infame projecto. Pela boca de Wyclif, com Cristo a orientá-lo, reclamando uma humanidade nova, Vuillard lembra-nos que “há uma pobreza que destrói. Há outra que glorifica. Um grande mistério reside nessa ideia: amar os pobres é amar a humanidade detestável, deixar de a desprezar. É amar o homem. Porque o homem é pobre. Irremediavelmente. Nós somos a miséria, erramos entre o desejo e a aversão.” A temperatura aumenta ainda alguns graus nesta narrativa. Há outros exemplos neste toque de clarim, outros padres que se viram para “um Cristo amargo”, e aquele que se destaca é Thomas Müntzer, “um desses idealistas apaixonados de que a medicina troça”. No Sul da Alemanha, este outro teólogo tem nele uma coisa terrível que o habita, que o sacode, diz-nos Vuillard. “Está tomado por uma grande cólera. Quer a pele dos poderosos, quer levar a Igreja à ruína, quer esventrar todos esses bastardos (…) Pretende acabar com a pompa e esse luxo de cão. O vício e a riqueza acabrunham-no, a associação dos dois esmaga-o. Quer causar medo”. Deste homem que irá pôr a Alemanha a ferro e fogo, e cuja audácia, a prosa ofensiva, o absoluto repúdio pela hipocrisia, evidentemente inspiram o autor, reconhece que há nele uma moral que não se deixa tocar pelo relativismo. “‘Jezabel não foi ainda integralmente comida pelos cães!’ É o que ele escreve. O Cristo amargo é a sua imagem mais abjecta e comovente”, anota Vuillard. A concisão e a brevidade desta narrativa são aspectos estruturantes, as frases alojam-se na pele como farpas, a literatura é a consciência do que podem as palavras, da mecânica desse tempo que faz o passado reentrar em cena dando instruções muito precisas à imaginação. E este autor tem uma impressionante voz de comando. Revela, desde logo, uma suprema habilidade no uso que faz da elisão. Como se fizesse a barba ao leitor, capaz de uma carícia como de sugerir-lhe um golpe frio e sem retorno. E esta narrativa precisa de dominar friamente o génio impiedoso da língua, porque se se trata de uma soberba obra literária, tem, ao mesmo tempo aquela crueza de uma incendiária peça processual. Reflectindo sobre a condição da Europa e a decadência da humanidade, Kafka terá dito a Max Brod que “nós somos pensamentos niilistas, pensamentos suicidas que sobem à cabeça de Deus”. De algum modo, Vuillard dá-nos o outro lado, os pensamentos mais vigorosos, e defende os seus idealistas de todos os ataques, lembrando que contra eles, para desacreditar e apoucá-los, hão-de erguer à sua volta lendas de cobardia com as suas numerosas variantes. Tantas vezes, tudo o que parece ser necessário é mostrar que eram humanos, que foram “frágeis e violentos, inconstantes e severos, enérgicos e repletos de angústia”, até, por vezes, mesquinhos… “podem colocar-se no divã Rousseau, Tolstoi, Lenine, e forçá-los a dizer o que quer que seja. Pode ver-se em todas as revoltas e em todos os fervores uma dor pessoal transfigurada; e então?” Vuillard admira a cólera destes padres malditos, esses que citam os antigos salmos, que sabem que há horas negras em que o mundo está para lá de toda a redenção, e que não há amor sem ódio, que o próprio inferno tem um papel a cumprir, e às vezes é preciso contar com as suas chamas para lavar a terra.