Ainda sobre a justiça e a mudança de vontades


Já ouço falar na necessidade de alargar os recursos para o STJ. Agora já é para alargar, depois de tantos anos a cortar. Muda o vento, muda a vela, sempre à bolina.


Ele há coisas que, mesmo sendo sérias e até tristes, me dão vontade de rir (não de alegria, mas com aquele mesmo riso que empregamos numa ópera bufa). Durante anos e anos, o legislador português e os defensores bem-pensantes das pretensas virtudes da República – em geral, alguns académicos que nunca saíram do laboratório, muitos jornalistas e opinadores crentes no seu papel salvador, quando não mesmo profético, e políticos prenhes de ingenuidade ou sôfregos de popularidade (e um ou outro nostálgico do totalitarismo de massas) – dedicaram-se a diminuir sensivelmente o número, o âmbito e os efeitos dos recursos no processo penal português; isto, ao mesmo tempo que, a coberto de discursos de eficiência, “moralidade” e/ou excesso de garantismo, deram uma poda valente em várias garantias essenciais. Mas foi assim anos a fio, sempre a cortar, e com aplauso generalizado, enquanto uns poucos, pregando no deserto, e muitas vezes alvo das maiores suspeitas sobre as suas verdadeiras intenções, iam alertando para o corte nas garantias, em geral, e para o excesso de limitação em matéria de recursos, em particular. Mas não, não tinham razão, era preciso limitar os “expedientes dilatórios”, era preciso celeridade e eficácia, havia que acabar com essa corja de poderosos e seus advogados sempre prontos a recorrer, recorrer e recorrer. Recorrer para quê? Para atrasar o castigo de uma culpa certa, às vezes certa e sabida desde o início do processo, de tal modo que quase não era preciso julgamento. E assim íamos, cantando e rindo.

Até que, num país que adora pensar numa corridinha e em função de fenómenos e casos concretos, apareceu a questão das suspeitas de irregularidades (ou outras coisas) nas Relações e noutras distribuições, et cetera. Então, aqui d’el-rei, já ouço falar na necessidade de alargar os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça. Bonito. Agora já é para alargar, depois de tantos anos a cortar. Muda o vento, muda a vela. Sempre à bolina, o que é pena, porque ele há coisas nas quais não podemos estar dependentes do vento: temos de saber para onde ir, por onde, porquê e para fazer o quê.

Recursos e garantias penais são uma delas, e tudo isto existe, tudo isto é triste, e tudo isto é o nosso fado de muitas vezes não pensar em profundidade, estrategicamente e de forma desligada da espuma dos dias. A questão dos recursos – mais ou menos, com maior ou menos âmbito, com estes ou aqueles efeitos – é uma questão que exige ponderação global e nada tem que ver com estas suspeitas. É uma questão estrutural, e não é por haver mais ou menos suspeitas que se deve mudar. E eu até estou muito à vontade nisto porque fui dos que durante anos pregaram (e continuo, porque esta moda passa rápido, é só até ao próximo vento) – levando com o escárnio, o anátema e as suspeitas do costume – contra a excessiva musculação do processo penal e alguns atropelos graves que nessa área (na lei e/ou na ação judiciária e judicial) se praticaram em matéria de recursos. E noutras tão ou mais graves, mas para as quais o vento ainda não mudou, porque não aconteceu nenhum caso nem ocorreu fenómeno que despertasse as boas consciências da nação. Lá chegará o dia, para muitos ou para todos, ou só para aqueles a quem “a coisa” bater à porta.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira


Ainda sobre a justiça e a mudança de vontades


Já ouço falar na necessidade de alargar os recursos para o STJ. Agora já é para alargar, depois de tantos anos a cortar. Muda o vento, muda a vela, sempre à bolina.


Ele há coisas que, mesmo sendo sérias e até tristes, me dão vontade de rir (não de alegria, mas com aquele mesmo riso que empregamos numa ópera bufa). Durante anos e anos, o legislador português e os defensores bem-pensantes das pretensas virtudes da República – em geral, alguns académicos que nunca saíram do laboratório, muitos jornalistas e opinadores crentes no seu papel salvador, quando não mesmo profético, e políticos prenhes de ingenuidade ou sôfregos de popularidade (e um ou outro nostálgico do totalitarismo de massas) – dedicaram-se a diminuir sensivelmente o número, o âmbito e os efeitos dos recursos no processo penal português; isto, ao mesmo tempo que, a coberto de discursos de eficiência, “moralidade” e/ou excesso de garantismo, deram uma poda valente em várias garantias essenciais. Mas foi assim anos a fio, sempre a cortar, e com aplauso generalizado, enquanto uns poucos, pregando no deserto, e muitas vezes alvo das maiores suspeitas sobre as suas verdadeiras intenções, iam alertando para o corte nas garantias, em geral, e para o excesso de limitação em matéria de recursos, em particular. Mas não, não tinham razão, era preciso limitar os “expedientes dilatórios”, era preciso celeridade e eficácia, havia que acabar com essa corja de poderosos e seus advogados sempre prontos a recorrer, recorrer e recorrer. Recorrer para quê? Para atrasar o castigo de uma culpa certa, às vezes certa e sabida desde o início do processo, de tal modo que quase não era preciso julgamento. E assim íamos, cantando e rindo.

Até que, num país que adora pensar numa corridinha e em função de fenómenos e casos concretos, apareceu a questão das suspeitas de irregularidades (ou outras coisas) nas Relações e noutras distribuições, et cetera. Então, aqui d’el-rei, já ouço falar na necessidade de alargar os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça. Bonito. Agora já é para alargar, depois de tantos anos a cortar. Muda o vento, muda a vela. Sempre à bolina, o que é pena, porque ele há coisas nas quais não podemos estar dependentes do vento: temos de saber para onde ir, por onde, porquê e para fazer o quê.

Recursos e garantias penais são uma delas, e tudo isto existe, tudo isto é triste, e tudo isto é o nosso fado de muitas vezes não pensar em profundidade, estrategicamente e de forma desligada da espuma dos dias. A questão dos recursos – mais ou menos, com maior ou menos âmbito, com estes ou aqueles efeitos – é uma questão que exige ponderação global e nada tem que ver com estas suspeitas. É uma questão estrutural, e não é por haver mais ou menos suspeitas que se deve mudar. E eu até estou muito à vontade nisto porque fui dos que durante anos pregaram (e continuo, porque esta moda passa rápido, é só até ao próximo vento) – levando com o escárnio, o anátema e as suspeitas do costume – contra a excessiva musculação do processo penal e alguns atropelos graves que nessa área (na lei e/ou na ação judiciária e judicial) se praticaram em matéria de recursos. E noutras tão ou mais graves, mas para as quais o vento ainda não mudou, porque não aconteceu nenhum caso nem ocorreu fenómeno que despertasse as boas consciências da nação. Lá chegará o dia, para muitos ou para todos, ou só para aqueles a quem “a coisa” bater à porta.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira