Contemplai e curvai-vos perante o edifício da justiça!


A simples ideia – infelizmente, confirmada em várias ocasiões – de que a justiça não é isenta ou imparcial é insuportável, porque a justiça, quando decide, decide com todo o poder e o peso institucional do Estado atrás de si.


Gostaria, em muito poucas palavras, de descrever em que consiste o sistema de administração da justiça em Portugal, para benefício daqueles que desconhecem como seja.

Na sua forma mais recente, a organização do sistema judiciário foi instituída pela lei n.o 62/2013, de 26 de agosto, que nestes seis anos decorridos vai já na sua 11.a versão.

O artigo 29.o desta lei (categorias de tribunais) dá-nos uma ideia do sistema:

“1 – Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais:

a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância;

b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais;

c) O Tribunal de Contas.

2 – Os tribunais judiciais de segunda instância são, em regra, os tribunais da Relação e designam-se pelo nome do município em que se encontram instalados.

3 – Os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca.

4 – Podem existir tribunais arbitrais e julgados de paz”.

O que é relevante aqui é notar a existência de duas jurisdições principais: a dos tribunais comuns, cíveis e criminais, com as várias especialidades em que se dividem os cíveis (trabalho, família, comércio, insolvência, marítimo, etc.), e a jurisdição administrativa, que se ocupa, na essência, dos conflitos que envolvam entidades públicas e que se divide em tribunais administrativos e tribunais fiscais.

Cada uma destas duas jurisdições tem três instâncias: a primeira instância; os tribunais de recurso, chamados da Relação nos tribunais comuns e centrais nos tribunais administrativos; e, finalmente, no topo de cada uma das jurisdições, um supremo tribunal – Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Administrativo.

Esta estranha divisão decorre directamente do comando constitucional que a impõe, não sendo prática nem expediente e colocando, aliás, questões de precedência jurisprudencial muito complexas.

Sobre este edifício reina o Tribunal Constitucional, cuja missão é a de avaliar a constitucionalidade das disposições legais e a vinculação das sentenças judiciais a essa constitucionalidade.

Em paralelo existe o Ministério Público, que representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar, participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exerce a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição, do respectivo estatuto e da lei.

Sobre os tribunais administrativos já tive ocasião, nesta crónica, de me pronunciar no sentido de que deveriam ser extintos, e já, por completa incapacidade de lidar com as questões que lhes são submetidas.

Porque os assuntos são sempre mais bem explicados com recurso a uma pequena anedota pessoal, há muitos anos, quando me ocupei da reforma integral dos tribunais administrativos, falando com um juiz conselheiro do Supremo Tribunal Administrativo, dizia-me este senhor que bem se esforçava por explicar aos juízes de primeira instância que o Estado não era um réu igual aos outros e não podia perder em tribunal…

A reforma de 2013 veio concentrar os meios judiciais existentes numas poucas dezenas de comarcas (tribunais judiciais de primeira instância) cuja complexa organização interna não vou aqui detalhar.

Cabe aqui dizer que ao lado da organização judiciária, mas bem no seu coração, existe uma coisa chamada Conselho Superior da Magistratura – CSM (replicado nos tribunais administrativos), que é o órgão do Estado a quem estão constitucionalmente atribuídas as competências de nomeação, colocação, transferência e promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar, sendo, simultaneamente, um órgão de salvaguarda institucional dos juízes e da sua independência.

Dito assim, parece simples mas, na verdade, o CSM é o verdadeiro poder dentro do poder judicial. Se pensássemos nos juízes como uma ordem religiosa (com as quais às vezes se parecem), o CSM seria o seu Vaticano.

Olhando para as competências deste órgão, é fácil de concluir que a vida de um juiz desde que sai do Centro de Estudos Judiciários, onde se forma, até que se jubila depende por inteiro, desde a atribuição de casa de função até à possibilidade de acumular comarcas ou juízos, e ganhar em conformidade, à promoção, ao local da nomeação, a tudo, em suma, da boa ou má vontade dos poderes fácticos que mandam no CSM.

E quanto às garantias de independência e inamovibilidade consagradas na lei (art.os 4.o e 5.o) e na Constituição, o que são elas perante a fragilidade do ser humano que sabe que a sua vida e carreira estão nas mãos de outros que delas dispõem?

Se todo este edifício judiciário fosse gerido por anjos, criaturas diáfanas sem sujeição às vis necessidades dos homens, poderia funcionar; infelizmente, é gerido por mulheres e por homens de carne e osso, que comem, dormem, bebem, casam e descasam, têm filhos, querem progredir nas suas carreiras, compram casa, endividam-se ao banco, como todos nós.

E como todos nós são submetidos ao longo das suas vidas profissionais às mais variadas provas de carácter e tentações. Mas, ao contrário de todos nós, são avaliados e julgados pelos seus próprios órgãos corporativos e pelos seus pares. Daí que a coisa mais importante na carreira de um juiz seja não se incompatibilizar com quem sabe que um dia decidirá sobre a mesma.

Que o sistema não é gerido por anjos, já sabemos; trata-se antes de pessoas como nós. Mas a essas pessoas que detêm e corporizam o poder judicial, que dispõem sobre a nossa vida, liberdade, honra e património, o que não podemos deixar de exigir sempre é um comportamento absolutamente isento, imparcial e decente.

Um juiz pode decidir bem ou mal, mas não pode decidir com a priori, pré-julgamento, ideias preconcebidas ou ao serviço de outros interesses que não os da justiça.

A simples ideia – infelizmente, confirmada em várias ocasiões – de que a justiça não é isenta ou imparcial, tem um viés contra os interesses de uma parte ou quer sustentar os interesse de outra é insuportável, porque a justiça, quando decide, decide com todo o poder e o peso institucional do Estado atrás de si.

Uma democracia e um Estado de direito não podem conviver com a suspeita, a ideia de que a justiça esteja a ser deturpada da sua função, que juízes apontados ao Tribunal Constitucional obedeçam a uma agenda política estranha à ideia de justiça, que juízes da Relação se entendam entre si para deturpar as regras de distribuição de processos de forma a favorecer uma parte numa contenda, que, em suma, o prato da balança esteja à partida desequilibrado. Isso é insuportável e acaba por ser a maior ameaça à nossa democracia e à ideia que temos do que seja um país decente.

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”