Mosquito.  “É como se esta guerra não tivesse existido”

Mosquito. “É como se esta guerra não tivesse existido”


A partir da história do seu avô em Moçambique, na I Guerra, João Nuno Pinto quis recuperar uma guerra apagada da memória.


“Livremente inspirado numa história verdadeira”. A história verdadeira é a história da passagem do avô do realizador, Zacarias, pela frente moçambicana da I Guerra Mundial. Como no filme de Sam Mendes, com um ponto de partida parecido, também o ano é o de 1917. Já a história, essa é História, parte da História que o Estado Novo tratou, com sucesso, de enterrar e que, com Mosquito (que, estreado em janeiro em Roterdão, chega amanhã às salas) João Nuno Pinto procura resgatar. Um filme que, diz o realizador, “não inventa nada”. Um filme “cru”. E não há de facto adjetivo melhor para descrever aquilo a que se assiste nesta viagem ao lado de Zacarias.

É curioso que Mosquito nos chegue quase nada depois de 1917. Também este seu filme parte da história do seu avô para mergulhar nesse mesmo ano da I Guerra Mundial, em Moçambique. Era mesmo Zacarias o nome do seu avô?

Era, chamava-se mesmo Zacarias. Queria tê-lo mudado, mas não consegui porque às tantas já estava muito ligado a este nome. Nunca conheci o meu avô. Aliás, nem seria suposto eu ter tido um avô na primeira guerra, teria neste momento 120 anos. Quando nasci ele já tinha falecido há algum tempo, mas sempre houve esta história na família – aliás, várias, porque o meu avô era essa figura grande da família e contava muitas histórias. Uma delas é esta: de quando era miúdo, tinha 17 anos, e queria muito ir para a guerra – não havia nem Interrail nem Erasmus, as janelas de oportunidade para sair da aldeia eram muito poucas e uma delas era de facto alistarem-se no exército. Ele alistou-se, queria ir para França.

Não era a guerra em Moçambique que queria então, era outra.

Não. Foi parar a Moçambique, a esta guerra obscura. Ainda no acampamento apanha malária, é deixado para trás, e depois vai à procura da guerra. Sozinho, África adentro. 

Esta é a parte de Mosquito que aconteceu. O resto está no domínio do que imagina que tenha, ou que poderia ter, acontecido.

Sim. Vou à procura do que terá acontecido nesta viagem, que ninguém sabe, mas que há ter sido terrível e ao mesmo tempo fascinante o suficiente para depois ele ter ficado em Moçambique. Se fosse só uma experiência traumatizante, se fosse só o horror, ele teria voltado para Portugal. Mas não. Alguma coisa se passou ali para ele ter ficado, para ele ter trocado Portugal por Moçambique. Tudo começa aí: eu a tentar entendê-lo e a procurar ligar-me a esta figura maior da minha família que nunca conheci e que tem uma aventura que acaba por ser a causa de eu ter nascido em Moçambique. Esta é a razão para ter querido contar esta história, que já queria contar antes de ter filmado o América (2010). E quando começo a pesquisar sobre esta guerra, sobre este período…

… uma guerra esquecida no imaginário coletivo português – a propósito disso, aliás, o jornalista Manuel Carvalho publicou o livro A guerra que Portugal quis esquecer (2015, ed. Porto Editora).

Foi isso mesmo que aconteceu. Nós só entrámos na guerra, na I Guerra Mundial, por causa das colónias, por causa de África. Se não entrássemos, com toda a certeza, ou fariam parte das partilhas ou entre os Aliados ou iriam para a Alemanha, se tivesse vencido. Desde o início que Portugal quer entrar na guerra. Os ingleses é que não querem Portugal na guerra porque querem as nossas colónias. A ideia de Inglaterra era invadir Moçambique e Angola com o pretexto de combater os alemães e depois já não voltar a sair de lá. Por mais na bancarrota que o país estivesse, por mais mal preparado que estivesse o exército, desde o início que Portugal queria entrar na guerra. E só conseguiu em 1917, quando Inglaterra precisa de Portugal para apreender um conjunto de navios alemães. É aí que Portugal diz: “Ok, mas como contrapartida nós entramos na guerra”. 

E a verdade é que morreram em Moçambique, para onde foram enviados 20 mil soldados portugueses, mais homens do que em França, na trágica batalha de La Lys. 

Os nossos aliados, que eram os ingleses, eram uns aliados que em África não eram bem aliados. Foi a contragosto que fomos aliados. E não estávamos preparados, não tínhamos dinheiro, tínhamos um exército precário, mal equipado, estávamos em três frentes de batalha – França, Angola e Moçambique, onde apanhámos um génio militar a comandar as tropas alemãs, um homem que nunca perdeu uma batalha. Então tudo correu mal. Foi um desastre completo. Morreram mais soldados lá do que em França. Africanos, então, nem se fala: morreram aos milhões, nem há uma contagem. Foi um desastre, uma humilhação enorme para o país, que ia contra a narrativa oficial de uma justificação para podermos…

… uma justificação para o estatuto de colonizador?

Da legitimidade que tínhamos, enquanto “civilização superior” e enquanto “raça superior” para ocupar aqueles territórios. Havia um discurso, uma narrativa de que aquela guerra e o desastre que foi era exatamente o oposto: não éramos superiores, éramos muito mal preparados e não tínhamos capacidade para. Então, quando chega o Estado Novo, isso é completamente apagado da História – o próprio exército apaga esse episódio, só fala de França – e essa guerra desaparece. De repente, é como se nunca tivesse existido. E quando começo a descobrir isso ainda mais vontade tenho de ocupar esse espaço de amnésia de uma nação. Ao ser eu a contar essa história, passo a ser eu a ocupar essa narrativa e o que vou contar vai passar a ser a verdade. Apesar de me basear em factos reais, desmonto-os e começo a brincar com o que é verdade e o que é ficção. 

A propósito dessa ideia de “civilização superior”, talvez o mais chocante em Mosquito, e está lá desde as primeiras cenas, é a forma como os portugueses tratam negros. A forma como o sargento interpretado pelo João Lagarto os trata: como animais de carga. Nem mais nem menos do que isso.

Aquilo é real. Se houve coisa que quis foi que nenhum dos personagens tivesse uma moralidade ou um pensamento adequado aos dias de hoje. O pensamento e a moralidade deles têm a ver com o que era Portugal há 100 anos. É assim que eles falam, é assim que eles reagem e nenhum deles é um monstro. Era o normal. Nenhum deles é um assassino sanguinário, não: são pessoas normais que se comportam…

… à época.

À época. Lembro-me de quando vim de Moçambique, pequenino, com 5 anos, era o Samora Machel o Presidente, os portugueses gozarem com ele, a chamarem-no de macaco. Era só piadas com o Samora Machel: que era analfabeto, que era burro, que era… 

Foi um Presidente importantíssimo na História de um país que Portugal deixou com uma taxa de analfabetismo acima dos 90%.

Um país de pessoas analfabetas, com problemas estruturais enormes… Estamos a falar de há 40 anos. Há 40 anos o Presidente de Moçambique era comparado em Portugal a um macaco. E nós não conseguimos aceitar que somos isso. Somos os filhos dos pais que tiveram uma grande fortuna que já não têm mas que continuam com a nostalgia de quem teve. Esquecem-se que aquela riqueza foi uma riqueza acumulada à custa do sofrimento de milhões de pessoas. O que o filme mostra – e nesse sentido não inventa nada, é cru – é o que era a realidade num momento ainda mais crítico que é uma guerra, e uma guerra entre potências europeias no continente africano. Uma guerra com a qual os africanos não tinham nada a ver. Não a criaram, não estavam a defender o território deles, não: era uma guerra entre portugueses, ingleses, belgas, franceses e alemães em território africano que envolveu e arrastou milhões de africanos ou como soldados ou como carregadores. Morreram milhões e milhões e milhões. Fizemos isso e foi um horror e foi um holocausto e depois apaga-se o holocausto e não se fala mais no assunto. E mais: a seguir, ainda pomos a culpa na vítima. Somos os carrascos que a seguir ainda vimos dizer “não, mas eles é que não têm capacidade para se governarem”. Ainda temos esta atitude paternalista e superior de dizer que vale a meritocracia: se eles tiverem capacidade, chegam cá.

Quando o que deixámos para trás foram países de analfabetos.

E devastados. Havia territórios com culturas próprias, com regras próprias e com um sistema próprio e, ao chegarmos lá, há 500 anos, fizemos duas coisas: destruímos essa cultura, impusemos a nossa.

Da maneira que convinha.

Não dando acesso, não educando, mantendo sempre uma população à margem da educação, da cultura, de cuidados… O que hoje se passa em África é a continuação do que lá deixámos. Como a escravatura: fomos responsáveis pelo comércio de milhões e milhões de escravos. Os grandes comerciantes de escravos éramos nós. O problema de consciência dos portugueses em relação a isso é zero. A Alemanha, que teve o seu Holocausto com os nazis, desde o fim da II Guerra que todos os dias pede desculpa e trabalha essa questão. Nós nunca trabalhámos a questão da escravatura. E, mais uma vez, pomos a culpa na vítima, dizemos: “Mas quando chegámos a África eles já se escravizavam, já havia comércio de escravos. Nós só chegámos lá e globalizámos esse comércio”. E é verdade, havia comércio de escravos em África, como havia no Império Romano. A diferença é que antes de nós se fazia escravos por guerras religiosas, por guerras de etnia, por guerras de poder. Aqui, foi uma necessidade capitalista: para os europeus comerem chocolate e beberem café. O que acontece é que para se escravizar o outro é preciso desumanizá-lo. E foi isso que foi feito: desumanizou-se o negro. E aí surgiu a questão da raça, por uma questão económica. A questão é: como é que agora se desmontam estas narrativas, que são tão antigas? No século XXI, em 2020, continuamos a não saber alterar todas estas narrativas que é preciso desmontar, discutir, percebendo o que realmente aconteceu lá atrás. Por isso é que no filme…

… exato: de volta ao filme, e fechando este parêntesis.

Por isso é que no filme o meu ponto de partida no filme foi não inventar nada. Foi mostrar e cada um que tire as suas conclusões. Mas depois há a construção da narrativa, e aí entra o sargento, quando começa a falar do que é África, do que são os alemães… Sabemos por que é que aconteceu a guerra, mas para o soldado é preciso criar outra justificação. E aí entra o patriotismo, uma vez mais a desumanização do outro, que é o inimigo.Os “boches” que, diz o sargento, “jogam à bola” com cabeças dos portugueses. Os alemães, sim. E aí vem a criação dos mitos, dos medos, dos monstros, que contamina a cabeça dos soldados e contamina a cabeça do Zacarias. Um rapazinho inocente que vai completamente doutrinado para achar que os negros são uns incapazes e um subproduto da humanidade, os alemães uns monstros horríveis e os portugueses os portadores da verdade e os salvadores da civilização. Esta é a doutrina.

Só acreditando em qualquer coisa desse género é possível que se vá, como Zacarias, contra tudo e todos, à procura da sua companhia.

O Zacarias é um jovem que, inocente e orgulhoso, acredita naquilo tudo. 

Inocente, mas cada vez menos.

O filme começa com uma visão super eurocêntrica de África, porque estamos sempre com o Zacarias, mas depois tudo isto que lhe ensinaram vai sendo posto em causa. Porque as coisas que lhe ensinaram não são bem…

O que ele encontra.

Exatamente. O filme é isso: é uma viagem de crescimento, como nos road movies. Acaba por ser um road movie. Não é de carro nem por estradas mas é caminhando: alguém que caminha sempre à procura de um objetivo. À medida que ele avança, vai crescendo também e vai-se libertando dos supostos ensinamentos com que chega.

Recuperando aquela ideia do jogo com o que é real e o que é ficção, isso não se aplica apenas à divisão entre o que é factual é ao que é ficção, ou ficcionado; na verdade é também o que se passa na cabeça dele, Zacarias.

Ele tem malária e as febres da malária dão delírios e ele vai ficando cada vez mais confuso, vai-se perdendo. O meu objetivo é que estejamos o mais perto possível do Zacarias – é sempre tudo do ponto de vista dele, entendemos o que ele entende, não entendemos o que ele não entende, estamos com ele – e à medida que ele vai ficando mais confuso também as suas memórias. Por isso é que quebro a linearidade da narrativa. Quando ele começa a caminhada já teve malária, é suposto já estar confuso. E só deixa de ter essa constância desses delírios quando é curado. E quem o cura… é o lado feminino da história, que também é importante no filme.

A vontade de resgatar num filme esta guerra apagada vem de uma vontade, de uma esperança, que no cruzamento destes dois mundos surja qualquer coisa que possa apontar no sentido da reposição de uma justiça histórica?

Não quero fazer spoilers, mas, sim. Ele chega a achar-se superior, mas a realidade é aquela. Também não quis retratar aqui uma África romântica, não. Aquilo é a África real, é assim que funciona: mas há regras e há uma sociedade que cuida e que se protege. Essa é a África original. E há esse confronto entre o lado masculino – a loucura, a destruição, a vingança, o ódio – e o lado feminino – o acolhimento, o cuidar, o plantar, o crescer – e para mim é muito claro: o mundo está assim hoje porque até hoje foram os homens a tomar conta de tudo. 

O que sabia da viagem do seu avô?
Sabia como tinha começado e como tinha terminado. Tudo o resto, não tinha, tive de encher com a história – e com o significado que lhe queria dar.

Um significado acompanhado de uma verdade histórica. Que tipo de pesquisa fizeram para perceber como se vivia, como se falava, o que poderia ter acontecido ou não, etc.?

Primeiro, houve uma grande pesquisa em livros e de conversas com historiadores, depois houve outro trabalho, no terreno: fizemos mais de 5 mil quilómetros em Moçambique, de jipe, pelos locais da guerra. A guerra passou-se toda no norte de Moçambique, na nação Makua, e a pesquisa sobre essa cultura fizemo-la lá, no terreno. Tínhamos isto muito claro: para ele africanizar, esta África que ele encontra não pode ser uma África vista de fora, vista por nós, europeus.

Ou o filme não chegava aonde se propõe chegar.
Exatamente. E os acontecimentos pelos quais passa o protagonista são baseados nos quatro pilares da cultura makua. Isso não é explícito no filme, nem é para estar, mas é isso que lhe permite crescer enquanto pessoa. Ele liberta-se da figura paterna, o Justino, liberta-se da visão eurocêntrica… mas para se libertar tem de haver outra coisa que cresce nele. E essa coisa que cresce nele e que ocupa esse lugar é a África segundo a visão makua.

Quais são esses quatro pilares?

O lado místico, o lado social, o lado da família e o lado da cura. Criámos eventos que o façam passar por todos eles. Isto não é dito, mas está lá – e só está porque fizemos essa pesquisa. O filme trabalha a narrativa grega clássica, que é a jornada do herói, que passa por uma série de portais que tem de ultrapassar para seguir a viagem (e, podendo desistir, não desiste), portais esses construídos com base na cultura makua. E depois desconstruímos tudo tornando a narrativa não-linear.

Apesar de ser um filme de época, Mosquito aproxima-se, pela forma, pela banda sonora, do nosso tempo.

É uma história de há 100 anos e o exercício foi pensar em como conseguiria trazê-la para hoje.