Um mundo feito de mudança, na justiça também


Hoje, o discurso em torno da Justiça e das suas instituições constitucionais ou associativas e, bem assim, a elocução que nela alguns dos seus mais evidentes protagonistas assumem, mudou significativamente.


Uma das coisas que, com a idade, conseguimos ir observando, com mais ou menos bonomia, mas sempre com preocupação, é a forma como algumas das organizações sociais que integrámos, umas mais institucionais, outras de maior pendor cívico, vão evoluindo a partir das ideias fundadoras e das práticas que os que nelas vão participando aí desenvolvem depois de nós.

Excecionalmente, sucedem, ao longo da sua existência e exteriorização de vida, ruturas matriciais evidentes e drásticas, até porque, para continuarem a congregar um reconhecimento geral, tais instituições necessitam recorrer à legitimação fundadora.

A verdade é que, fruto das circunstâncias externas e das vivências internas dos que sucessivamente lhes vão dando corpo e visibilidade, em tais instituições não raro se alteram, quer o espírito que animou a sua fundação, quer, mesmo, os objetivos reais que as mantêm ativas.

Quando, por um lado, me refiro à alteração do espírito dos fundadores, quero sugerir não apenas a ideia mestra que as justificou, mas, também e sobretudo, a integridade e disponibilidade vital dos que, institucional e civicamente, se uniram a princípio para esse fim.

Quando, por outro, me refiro à transformação do objetivo que tais instituições foram chamadas a prosseguir, nem sempre a visibilidade da mudança é tão evidente, embora possa também ser profunda e até mais significativa.

É, por isso, neste plano que, mais frequentemente, se propiciam mudanças que se não contentam com a simples e necessária correção dos contornos do objetivo inicial, mas avançam já para a promoção de um novo objeto, por vezes só aparentemente análogo ao original.

É disso exemplo, a acomodação recente, pelo discurso político e mediático de direita, do conceito de “reformismo”, que estava inicialmente associado a um projeto social progressivo, mesmo que gradual e recusando ruturas – sendo nisso contrário aos projetos revolucionários – e que hoje é usado, precisamente, para significar os desígnios mais regressivos do ponto de vista social e económico, cuja essência retrógrada se quer, por via dessa apropriação indevida, disfarçar.

É disso exemplo, também, a apropriação do pensamento e ensinamentos de Gramsci por Marion Maréchal-Le Pen.

Hoje, entre nós, o discurso em torno da Justiça e das suas instituições constitucionais ou associativas e, bem assim, a elocução que nela alguns dos seus mais evidentes protagonistas assumem, mudou, também, significativamente, mesmo que, na aparência, todos invoquem, ainda, muitos dos conceitos que serviram para edificar os seus objetivos fundacionais.

Refiro-me, por exemplo, à preocupação com os direitos dos cidadãos, que justificou o inicial formato orgânico de algumas instituições de Justiça democrática, como, por exemplo, o do Ministério Público português.

É a maleabilidade desse seu formato institucional inicial que, alegadamente a partir das mesmas preocupações que o fundaram em 25 de Abril, alguns pretendem agora revolucionar, mais ou menos explicitamente.

Fazem-no, todavia, abstraindo já dos direitos concretos dos cidadãos confrontados com a Justiça, mas preocupados, sobretudo, com uma mais abstrata, mesmo que muitas vezes justificada, inquietação interna com a emancipação funcional dos que servem nessa instituição.

Acontece que, levada a extremos, tal apreensão contende fatalmente com alguns desses mesmos direitos dos cidadãos, designadamente os que respeitam ao controlo e sindicância efetivos dos atos desenvolvidos pelos seus agentes e, portanto, também, os que se referem à transparência e à responsabilização de todos os que, no processo penal, direta ou indiretamente, intervêm.

Ora, é neste ponto crítico de possível rutura – motivado, é certo, por circunstâncias externas extremas e discursos insistentes e, por vezes, capciosos – que, em certos casos, se corre o risco da perda da legitimidade que deu fundamento ao modelo das instituições formais e também ao daquelas outras, menos formais, que surgiram, num momento de fermento criativo, para apoiar as primeiras no desenvolvimento dos seus objetivos mais progressistas. 

Reencontrar um ponto de equilíbrio satisfatório, que congregue uma vez mais os interesses em causa, é fundamental, mas, precisamente porque de um aparente, mas nem por isso menos relevante, conflito de interesses públicos se trata, tal esforço de elucidação e síntese só pode legitimamente caber aos representantes do povo, em nome de quem a Justiça é exercida.

 PS: na semana passada, indiquei erradamente o nome do livro a que dediquei o texto. Na verdade o seu nome exacto é Trials of the State: Law and the Decline of Politic e não Trials of Justice, como por lapso escrevi. Agradeço ao leitor que mo fez notar.

 

Um mundo feito de mudança, na justiça também


Hoje, o discurso em torno da Justiça e das suas instituições constitucionais ou associativas e, bem assim, a elocução que nela alguns dos seus mais evidentes protagonistas assumem, mudou significativamente.


Uma das coisas que, com a idade, conseguimos ir observando, com mais ou menos bonomia, mas sempre com preocupação, é a forma como algumas das organizações sociais que integrámos, umas mais institucionais, outras de maior pendor cívico, vão evoluindo a partir das ideias fundadoras e das práticas que os que nelas vão participando aí desenvolvem depois de nós.

Excecionalmente, sucedem, ao longo da sua existência e exteriorização de vida, ruturas matriciais evidentes e drásticas, até porque, para continuarem a congregar um reconhecimento geral, tais instituições necessitam recorrer à legitimação fundadora.

A verdade é que, fruto das circunstâncias externas e das vivências internas dos que sucessivamente lhes vão dando corpo e visibilidade, em tais instituições não raro se alteram, quer o espírito que animou a sua fundação, quer, mesmo, os objetivos reais que as mantêm ativas.

Quando, por um lado, me refiro à alteração do espírito dos fundadores, quero sugerir não apenas a ideia mestra que as justificou, mas, também e sobretudo, a integridade e disponibilidade vital dos que, institucional e civicamente, se uniram a princípio para esse fim.

Quando, por outro, me refiro à transformação do objetivo que tais instituições foram chamadas a prosseguir, nem sempre a visibilidade da mudança é tão evidente, embora possa também ser profunda e até mais significativa.

É, por isso, neste plano que, mais frequentemente, se propiciam mudanças que se não contentam com a simples e necessária correção dos contornos do objetivo inicial, mas avançam já para a promoção de um novo objeto, por vezes só aparentemente análogo ao original.

É disso exemplo, a acomodação recente, pelo discurso político e mediático de direita, do conceito de “reformismo”, que estava inicialmente associado a um projeto social progressivo, mesmo que gradual e recusando ruturas – sendo nisso contrário aos projetos revolucionários – e que hoje é usado, precisamente, para significar os desígnios mais regressivos do ponto de vista social e económico, cuja essência retrógrada se quer, por via dessa apropriação indevida, disfarçar.

É disso exemplo, também, a apropriação do pensamento e ensinamentos de Gramsci por Marion Maréchal-Le Pen.

Hoje, entre nós, o discurso em torno da Justiça e das suas instituições constitucionais ou associativas e, bem assim, a elocução que nela alguns dos seus mais evidentes protagonistas assumem, mudou, também, significativamente, mesmo que, na aparência, todos invoquem, ainda, muitos dos conceitos que serviram para edificar os seus objetivos fundacionais.

Refiro-me, por exemplo, à preocupação com os direitos dos cidadãos, que justificou o inicial formato orgânico de algumas instituições de Justiça democrática, como, por exemplo, o do Ministério Público português.

É a maleabilidade desse seu formato institucional inicial que, alegadamente a partir das mesmas preocupações que o fundaram em 25 de Abril, alguns pretendem agora revolucionar, mais ou menos explicitamente.

Fazem-no, todavia, abstraindo já dos direitos concretos dos cidadãos confrontados com a Justiça, mas preocupados, sobretudo, com uma mais abstrata, mesmo que muitas vezes justificada, inquietação interna com a emancipação funcional dos que servem nessa instituição.

Acontece que, levada a extremos, tal apreensão contende fatalmente com alguns desses mesmos direitos dos cidadãos, designadamente os que respeitam ao controlo e sindicância efetivos dos atos desenvolvidos pelos seus agentes e, portanto, também, os que se referem à transparência e à responsabilização de todos os que, no processo penal, direta ou indiretamente, intervêm.

Ora, é neste ponto crítico de possível rutura – motivado, é certo, por circunstâncias externas extremas e discursos insistentes e, por vezes, capciosos – que, em certos casos, se corre o risco da perda da legitimidade que deu fundamento ao modelo das instituições formais e também ao daquelas outras, menos formais, que surgiram, num momento de fermento criativo, para apoiar as primeiras no desenvolvimento dos seus objetivos mais progressistas. 

Reencontrar um ponto de equilíbrio satisfatório, que congregue uma vez mais os interesses em causa, é fundamental, mas, precisamente porque de um aparente, mas nem por isso menos relevante, conflito de interesses públicos se trata, tal esforço de elucidação e síntese só pode legitimamente caber aos representantes do povo, em nome de quem a Justiça é exercida.

 PS: na semana passada, indiquei erradamente o nome do livro a que dediquei o texto. Na verdade o seu nome exacto é Trials of the State: Law and the Decline of Politic e não Trials of Justice, como por lapso escrevi. Agradeço ao leitor que mo fez notar.