A partida da sra. Merkel da chancelaria, anunciada há mais de um ano, pressentida há muito e desejada por muitos há ainda mais tempo, desencadeou uma guerra de sucessão que se desdobra em novos episódios.
Merkel vai no seu quarto Governo sucessivo, ultrapassou o recorde de longevidade política do seu criador, Helmut Kohl, e também o do arquétipo do chanceler do pós-guerra, Konrad Adenauer. Não tomou partido abertamente pela escolha do sucessor, mas deixou morrer na praia, por falta de apoio expresso, vários candidatos à sucessão. A mais fiel entre as fiéis apoiantes de Merkel, Ursula von der Leyen, sendo particularmente odiada na CDU, não colheria o voto dos militantes e acabou presidente da Comissão Europeia, fruto da igualdade de género, do amor à tecnocracia e do receio das derivas provenientes do Palácio do Eliseu. A escolha (em 2018!) de Annegret Kramp-Karrenbauer (AKK) para líder da CDU, entrando para o Governo como ministra da Defesa mantendo-se Merkel como chanceler, não augurava nada de bom para o futuro de AKK. O esmagar de uma primeira fronda anti-AKK dentro da CDU foi a vitória de Pirro que anunciou a sua morte política. O pretexto serviu para mostrar quem manda e quem manda é Merkel. A CDU apoiou na Turíngia a eleição de um liberal para presidente do governo regional e fê-lo juntando os seus votos aos da Alternativ für Deutschland (AfD), quebrando assim o cordão sanitário em torno da extrema-direita com assento parlamentar. Um secretário de Estado do Governo Merkel saudou a solução e foi corrido na hora. Poucas horas depois, o novel presidente do governo regional da Turíngia demitiu-se. Ficou claro que AKK não mandava na CDU. Mais difícil é saber por quanto tempo mandará Merkel. A ironia da situação não escapou ao sr. Schäuble, uma das vítimas dentro da CDU da monocultura merkeliana e actualmente relegado para a prateleira dourada e inofensiva da presidência do Bundestag. Comentando mais uma etapa da corrida à sucessão de Merkel, disse: “Na CDU corremos o risco de o próximo candidato a chanceler não vir a ser chanceler”.
Merkel representa a Alemanha na forma e na substância, no amor pela normalidade previsível e na incapacidade de ambição, tolhida pelo peso da História. Os problemas alemães são demasiado grandes para continuarem a ser só alemães. Fugido o Reino Unido, caiu também um modelo alternativo para a União Europeia (UE), com uma visão ambiciosa em matéria de política internacional e uma capacidade de a sustentar militarmente. Por França sobram visões ambiciosas para a UE, mas não entusiasmam sequer os franceses, perdidos no labirinto da história presente.
Muitos sonharam com Merkel em Bruxelas, federalizando de facto a Europa com o apoio de um chanceler de confiança. Seria essa a explicação para a criação do extraordinário cargo de presidente do Conselho Europeu, uma formalização inútil do espírito intergovernamental. Mas Merkel, em perfeita identificação com o sentir teutónico contemporâneo, nunca quis trocar Berlim por Bruxelas. As más línguas encontram na Stasi a causa destas coisas, tendo existido uma Inoffizielle Mitarbeiterin (IM, agente informador não oficial) que respondia pelo nome de código Erika e cujo percurso terá coincidido com o de Angela.
Não tendo querido dedicar-se à UE, Merkel deixa a Alemanha mais dividida do que a encontrou quando entrou para a CDU. Não só economicamente mas, sobretudo, do ponto de vista político, onde o leste se divide entre os comunistas não arrependidos do Die Linke e a extrema-direita da AfD. Não é uma herança auspiciosa.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990