“Somos chineses, não somos coronavírus”

“Somos chineses, não somos coronavírus”


Em Lisboa, os chineses correm para as farmácias para comprar máscaras e há quem envie algumas para a China. Por enquanto, o negócio não está a ser afetado pela propagação do coronavírus, mas já há relatos de comentários pouco simpáticos dirigidos aos chineses.


Mesmo à frente de uma loja chinesa na Praça Martim Moniz estão cinco pessoas – três homens e duas mulheres. As mulheres seguram nas mãos uma máscara. Acabaram de as comprar. Mas à preocupação que dizem sentir quanto à possibilidade de propagação do vírus sobrepõe-se a brincadeira. “Ali [apontando para a loja chinesa], só entro de máscara”, diz uma delas em tom irónico. Essa mesma mulher coloca a máscara, tira a máscara e dá ao marido para ele experimentar. E vão rindo. Depois entram na loja e saem sem comprar nada. A diversão parecia ser mais forte do que a vontade ou necessidade de comprar alguma coisa. Ainda assim, dizem que “Portugal não está preparado para o vírus e as pessoas não estão preocupadas com um assunto muito sério”.

Há quem olhe de lado para os chineses, e esta comunidade, que vive sobretudo de lojas de roupa ou de lojas que vendem tudo, olha para o futuro com receio. Nas ruas baralhadas de Alvalade, onde é preciso paciência para encontrar um lugar, encontra-se a calma de uma loja chinesa que vende roupa. A proprietária, Vicky, diz que por agora não há quebra nas vendas. “Primeiro, porque fevereiro é dos meses mais fracos de vendas”, diz. Mas teme que com o tempo, e se continuarem a morrer pessoas devido ao vírus, os portugueses tenham receio de frequentar estas lojas. Vicky acompanha ao minuto tudo o que se passa na China quanto ao tema coronavírus. E explica ao pormenor o que significam os carateres que aparecem no seu telemóvel: “Este é o número de pessoas que estão infetadas, isto é o número de pessoas que já morreram, este é o número de pessoas que ficaram curadas”. “Estou sempre a ver porque tenho família lá e, claro, eles estão assustados, mas todos usam máscaras e têm todos os cuidados”, acrescenta.

Para quem vive em Portugal, seja há muito ou pouco tempo, a discriminação que pode nascer das notícias que se multiplicam diariamente é prejudicial para o negócio, mas também para “o bem-estar dos chineses em Portugal”, diz Vicky. A chinesa de 34 anos conta que, na semana passada, o marido “foi chamado coronavírus na rua, quando estava a ir para o banco”. “Ele nem ligou, mas nós somos chineses, não somos coronavírus. A filha de uma amiga minha, que estuda em Cascais, foi gozada por outras crianças que lhe chamaram coronavírus também”, acrescenta. Os casos de discriminação, admite, não são muitos, mas não são bem-vistos.

A cerca de três quilómetros de Alvalade, no centro comercial do Estádio do Sporting, a opinião é unânime. A enorme loja que, apesar de ter nome português (Loja Maria), é de uma família chinesa, já tem os seus clientes habituais. Estes falam com os proprietários sobre o vírus e não deixam de ir lá. “Por agora, não estamos preocupados nem sentimos que as vendas tenham descido porque já temos os nossos clientes, estamos aqui há dez anos”, diz Jimmy.

“Mas há uma coisa que eu tenho de dizer: o programa da RFM que gozou com o sofrimento do povo chinês não é admissível”, diz. Jimmy vai mais longe e conta já ter contactado o seu advogado para que este envie uma carta à rádio para que seja feito um pedido de desculpas. “Gente, chinês tem muito. Sabe o que tem pouco, que a gente precisa tomar cuidado antes que desapareça? Homem alto, bonito, rico e engraçado […] Agora, chinês? Tem um monte, relaxa”, disseram na rádio. “Isto cria uma onda de opiniões falsas. Depois, as pessoas apontam o dedo ao chinês, a dizer que come morcegos. Os chineses comeram alguma coisa que não deviam ter comido, mas não podemos criticar ou gozar”, diz.

 

Mascarar o vírus

Sobre as máscaras, a Direção-Geral da Saúde (DGS) disse esta terça-feira que não é necessário usá-las. Aliás, segundo a DGS, o uso de máscaras pode dar uma “falsa sensação de liberdade”. O certo é que já começou a corrida às farmácias para comprar este produto. Na Avenida Almirante Reis, na Farmácia Aliança já não há máscaras disponíveis. E 98% dos clientes são chineses. Ao i, a responsável da farmácia explicou que a rotura de stock é uma situação normal nesta altura, uma vez que os laboratórios produzem tendo em conta as vendas do ano anterior. “Pedimos 300 máscaras, só recebemos 50 e já estavam todas encomendadas”.

Dentro da comunidade chinesa há também quem compre máscaras para enviar para a China, já que é lá que o material falta. Esta é a realidade que a Farmácia Atena, na mesma avenida, relata. “Há muita gente chinesa nesta zona. Os portugueses nem falam disso nem perguntam nada, só os chineses é que vêm comprar e até para mandar para a China”, diz uma das farmacêuticas. Aliás, um dos amigos de Vicky está empenhado nesse trabalho: “Ele está a juntar material – máscaras e aquelas capas que se usam – para mandar, porque lá [na China] é que eles precisam”.

Entre casacos e fatos de Carnaval, no centro comercial do estádio do Sporting, Jimmy conta que os pais costumam ir todos os anos à China, mas este ano não vão por causa do vírus. “Não querem arriscar”. E a conversa é a mesma numa loja de bijuteria da Avenida Almirante Reis, onde os clientes dizem não estar minimamente preocupados. Aliás, diz a dona da loja, “as pessoas que trabalham nas lojas estão há muito tempo em Portugal e, provavelmente, não vão à China nos próximos tempos por precaução”.

A comunidade chinesa é apelidada pelos próprios de “cautelosa”. “Nós temos muito cuidado, tenho amigos que vêm da China e ficam em casa em quarentena, porque têm medo de ter alguma coisa e infetar outras pessoas”, diz a dona da loja, que não tem mãos a medir com tantos clientes que entram e saem.

Na Avenida Almirante Reis, onde se concentram inúmeras lojas chinesas – desde cabeleireiros a restaurantes –, a azáfama é a mesma de sempre e não há quem diga que há menos clientes. Nos restaurantes, não há sinais de crise e duas jovens chinesas – estudantes em Nice, França – acabam de chegar a Portugal e foram logo a um restaurante chinês. “Todos agem como se não estivesse a acontecer, não sei se é bom ou mau. Nós usamos máscaras, mas os franceses não usam, e aqui também não”, diz uma das jovens, de 24 anos.

Os armazéns do Centro Comercial da Mouraria continuam a funcionar normalmente. Os chineses acompanham ao minuto o que se passa na China e estão confiantes: “Graças a Deus, está controlado e vai passar”, diz Vicky.