O recente filme de Roman Polanski constitui motivo para recordarmos as lições a retirar do caso Dreyfus. Dreyfus era um oficial de artilharia francês, de fé judaica, que em 1894 foi acusado de espionagem a favor da Alemanha e condenado sumariamente num tribunal militar a prisão perpétua por crime de traição à pátria. Foi em consequência enviado para a ilha do Diabo, na Guiana Francesa, considerada na altura a pior prisão do mundo.
No entanto, dois anos depois, foi nomeado chefe do serviço de inteligência do exército o tenente-coronel Georges Picquart, que descobre uma carta que provava claramente que o verdadeiro espião seria antes o major Esterhazy e que, portanto, Dreyfus estaria inocente. Picquart revela imediatamente essa prova aos seus superiores, mas os diversos generais que contacta recusam-se terminantemente a reabrir o processo, preferindo esconder a prova. Uma vez que Picquart se recusou a omitir essa prova e a encerrar a sua investigação, foi retirado das suas funções e enviado para a Tunísia. Por decisão dos generais franceses, Dreyfus, mesmo tendo sido condenado injustamente, passaria o resto dos seus dias na ilha do Diabo.
Tal não só veio a acontecer porque Picquart, tendo sido proibido de falar publicamente sobre o assunto, decidiu expor o que se estava a passar ao famoso escritor Émile Zola. Zola escreve então uma carta aberta ao Presidente da República Francesa, Félix Faure, que o jornal L’Aurore coloca na sua primeira página do dia 13 de Janeiro de 1898. Nessa carta, Zola denuncia a maquinação existente no processo de Dreyfus e acusa da mesma os altos oficiais militares, referindo expressamente que sabia que se expunha a ser condenado por difamação. Essa primeira página com o título “J’accuse!”, viria a ser considerada a mais importante manchete da História, tendo feito subir a tiragem do jornal de 30 mil para 300 mil exemplares, que se esgotaram em poucas horas.
Efectivamente, Zola viria a ser condenado a um ano de prisão por difamação dos generais que acusou, assim como Picquart viria a enfrentar um conselho de guerra, acusado de forjar a prova que inocentava Dreyfus. Mas o artigo permitiu que a opinião pública se apercebesse da injustiça do processo, o que levou a que Dreyfus obtivesse um segundo julgamento. Embora voltasse a ser condenado injustamente nesse segundo processo por pressão dos militares de alta patente, receberia depois um indulto presidencial, tendo uma revisão do processo vindo posteriormente a inocentá-lo de todas as acusações. Dreyfus foi, assim, reintegrado no exército e Picquart viria a ser posteriormente nomeado ministro da Guerra.
Este caso demonstra perfeitamente os perigos que podem ocorrer quando se permite que a investigação num processo penal possa ser objecto de ordens superiores exteriores ao processo e que dele não venham a constar. A defesa dos cidadãos acusados só pode fazer-se eficazmente se souber que intervenções hierárquicas houve num processo penal, a razão por que foram emitidas e em que termos estas condicionaram a acusação. A defesa dos cidadãos injustamente acusados assim o exige.
Bastonário da Ordem dos Advogados
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990