A reabilitação do espaço que em tempos acolheu o Hospital da Marinha, no Campo de Santa Clara, em Lisboa, tem dado que falar – não pela nova vida que se pretende dar ao edifício, mas pelas obras que estão em curso e que visam construir dois novos edifícios.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa aceitou, no final de novembro do ano passado, uma providência cautelar interposta pela Associação de Defesa do Património Cultural Edificado de São Vicente (ADPEV). Em causa está o projeto, aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa, que prevê a conversão do espaço onde está o antigo Hospital da Marinha num condomínio de luxo com cerca de 100 apartamentos. O problema não está na reabilitação do edifício do antigo hospital, mas sim na construção de dois novos edifícios que constam no projeto aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa. Outro problema é a interpretação que é feita das palavras ampliação e construção. Os dois blocos são considerados pela autarquia como obras de ampliação mas, segundo a ADPEV, são construções feitas de raiz, consideradas, por isso, ilegais.
Fonte ligada ao processo garantiu ao i que tanto a empresa que adquiriu o imóvel como a Câmara Municipal de Lisboa já se pronunciaram sobre o despacho emitido pelo tribunal, mas, novamente, as interpretações feitas pela autarquia, proprietário e associação sobre o mesmo documento são distintas. Ou seja, a providência cautelar interposta pela associação pretende travar a construção de dois novos edifícios no espaço onde está o antigo Hospital da Marinha, mas, segundo fonte ligada ao processo, a câmara municipal considera que as obras que vão dar origem aos novos edifícios não são obras de construção, mas sim de ampliação, não existindo, por isso, no projeto aprovado por Manuel Salgado, antigo vereador do Urbanismo da autarquia de Lisboa, nenhuma ilegalidade.
No despacho do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa a que o i teve acesso, é solicitado que sejam advertidas as partes envolvidas no processo quanto à “proibição prevista no artigo 128”. Consultado o artigo, este é bem claro: “A entidade administrativa e os beneficiários do ato não podem, após a citação, iniciar ou prosseguir a execução” e, além disso, “deve a entidade citada impedir, com urgência, que os serviços competentes ou os interessados procedam ou continuem a proceder à execução do ato”.
No entanto, ao i, a Câmara Municipal de Lisboa garantiu que “as obras licenciadas não foram suspensas”, acrescentando que “a providência cautelar não se refere à suspensão destes trabalhos, mas ao procedimento de licenciamento”. A autarquia foi ainda questionada sobre a sua posição em relação à providência cautelar mas, até à hora de fecho desta edição, não foi enviada qualquer resposta.
“Como a CML não proferiu nenhuma resolução fundamentada, o licenciamento está suspenso, não podendo prosseguir a obra”, referiu fonte ligada ao processo. Agora cabe ao tribunal decidir como vai qualificar juridicamente as obras: ampliação ou nova construção.
A história dos dois novos edifícios O edifício do antigo Hospital da Marinha foi vendido em hasta pública em 2016 por 17,9 milhões de euros a dois irmãos franceses, Geoffroy e Arthur Moreno, que são os sócios fundadores da Stone Capital. Esta empresa tem já em carteira um elevado número de projetos de luxo espalhados pela cidade de Lisboa e o edifício no Campo de Santa Clara foi adquirido por um valor que ultrapassou em cerca de 50% a base de licitação da hasta pública. Na altura, o Estado arrecadou 23 milhões de euros com a venda de quatro imóveis.
O projeto apresentado pela Stone Capital foi aprovado em 2019 pelo antigo vereador Manuel Salgado e pretende, além de recuperar o edifício do antigo Hospital da Marinha, rentabilizar a área envolvente através da construção de dois novos edifícios para apartamentos. O problema é que os edifícios vão ser construídos numa zona que está abrangida pela Carta Municipal do Património, que é um documento anexo ao Plano Diretor Municipal de Lisboa. Esta classificação significa que existem normas específicas para as intervenções urbanísticas em imóveis e em conjuntos arquitetónicos.
Em traços gerais, estão autorizadas obras de ampliação, recuperação, ou, eventualmente, de demolição quando os edifícios não podem ser recuperados devido ao estado avançado de degradação. Neste caso específico, os edifícios novos que constam no projeto não existiam nos terrenos – são obras completamente novas. É por isso que a Associação de Defesa do Património Cultural Edificado de São Vicente considera estas obras ilegais: “O processo de licenciamento municipal foi denominado pela CML como um processo de ampliação e alteração quando, na realidade, para além de obras de ampliação e de alteração a realizar no edifício do ex-Hospital da Marinha, o projeto submetido a licenciamento municipal contemplava a construção de dois novos edifícios”.
Demolições Apesar de a providência cautelar ter dado entrada este ano, a Câmara Municipal de Lisboa deferiu, em 2018, dois processos de início de trabalhos antecipados – um de escavação e outro de demolição. Sem especificar quais os elementos que estão a ser demolidos, o município de Lisboa referiu que “estão a demolir-se os elementos que estão previstos demolir no projeto aprovado”, adiantando que “foi proposta a reabilitação do antigo hospital com a demolição de todas as construções que o descaracterizaram durante muitos anos, procurando-se repor a imagem original do edifício”. Em causa poderão estar edifícios construídos, no início deste século, nas traseiras do antigo Hospital da Marinha que em nada correspondiam à estrutura inicial do edifício.
Quanto à antiga farmácia, a Câmara Municipal de Lisboa garantiu que o espaço “é para manter, restaurar e valorizar” e, relativamente à salvaguarda dos restantes espaços, a autarquia liderada por Fernando Medina apenas adiantou que “está prevista a manutenção dos espaços considerados relevantes e com interesse patrimonial pelos Serviços municipais, bem como a sua recuperação e valorização”.
O edifício de dois pisos que deu origem ao Hospital da Marinha está fechado há seis anos, mas a sua história é uma das razões que levam as associações a lutar pelo património da capital e para que a área envolvente não seja descaracterizada. Este foi o primeiro hospital de Lisboa a ser construído de raiz, inaugurado em 1806 – até à data da sua edificação, todos os hospitais eram recuperações de antigos conventos. Apesar de ter fechado portas no final de 2012, até 2015 ainda funcionava o serviço de câmaras hiperbáricas.
O i tentou contactar a empresa que comprou o antigo Hospital da Marinha mas, até à hora de fecho desta edição, não foi enviada qualquer resposta.