Filipe Sambado.  “Os pais não deviam gostar da música que os filhos fazem”

Filipe Sambado. “Os pais não deviam gostar da música que os filhos fazem”


Revezo é o álbum que Filipe Sambado lança hoje e é também uma prática agrícola. Em entrevista ao i, explica o significado da metáfora.


Revezo é o nome dado à prática agrícola que consiste na mudança do gado para um novo pasto, de forma a dar descanso ao prado. É também o título do novo álbum de Filipe Sambado. O disco mais pessoal do cantautor, onde, num regresso à infância, reconstrói o folclore tradicional português como forma de provocação a uma sociedade conservadora. Em entrevista ao i, fala sobre este som renovado e sobre este êxodo rural que faz em Revezo.

Neste álbum predominam o folclore e da musica popular. Porquê esta viragem?

Fez-me bastante sentido ao longo da fase de arranjo do disco trabalhar as músicas desta forma. Senti a necessidade de contextualizar as canções que faço num lugar e num tempo. Agarrar em ideias mais ligadas ao folclore português permite-me imprimir melhor a sensação de que é um disco cantado aqui [em Portugal] e desta altura.

Isto vem da sua infância no Alentejo e no Algarve?
Não diretamente. A música tradicional do Algarve é mais rápida, com os grupos de corridinho, e no caso do Alentejo está mais ligada ao cante que é menos percussivo. Esse lado está ligado à pesquisa que fui fazendo e é uma coisa mais minhota e transmontana. Está ligado ao meu interesse e curiosidade pelo próprio país e pela música que se foi fazendo.

Chegou a fazer parte de algum grupo de música tradicional?
Não [risos], na altura não ligava muito, mas hoje tenho pena de não ter aprendido o corridinho e de não ter andado nesses grupos.

Mas era fã de festas populares?
Sempre fui mais ligado à música mais contemporânea e, de certa forma, acessível. Nunca tive internet na adolescência, só comecei a ter acesso quando vim para Lisboa para a faculdade. A música que ouvia era maioritariamente da MTV e da Antena 3, não tinha acesso a muito mais que isso. Os meus pais são divorciados, quando ia ter com o meu pai aos fins de semana ele mostrava-me muita coisa. É uma pessoa muito atenta, ia comprando alguns discos e eu tentava atualizar-me por aí.

Foi ele que o incentivou a fazer música?
Acho que pode haver aqui um lado psicanalítico da minha vontade de fazer música na perspetiva de querer agradar ao gosto do meu pai. Mas ele não fez um esforço, foi um interesse que fui tendo.

O seu primeiro instrumento foi a guitarra?
Foi, houve um Natal que a minha avó paterna me ofereceu uma viola baratinha, que tive durante muito tempo. Tinha uns 8 ou 9 anos quando a recebi, mas só muito mais tarde comecei a aprender. Nunca tive aulas de música, comecei foi a interessar-me e a conhecer pessoas que tocavam e a aprender com eles e a experimentar. Durante muito tempo fazia quase tudo por curiosidade auditiva. As sequências de acordes soavam-me bem, tentava pôr uma melodia com a voz.

Nessa altura, ouvia o quê?
Coisas um bocado mais elementares. Bandas do Algarve que me iam passando, coisas genérica como Justin Timberlake ou Britney Spears, ou Pharrell Williams. Basicamente, toda aquela massificação do rap mais comercial e da pop que se desenvolvia com os ritmos que estavam a aparecer nessa altura mais ligados ao hip-hop. Quando estava com o meu pai é que conseguia ter acesso a outro tipo de música.

Ele ouvia o quê, rock de pai?
A cena fixe dele, e também má, é que o meu pai sempre foi muito atento ao que estava a acontecer. Nunca me mostrou Beatles, só os descobri mais tarde. Ele não tinha vontade de mostrar bandas de infância, era ao contrário: “Agora estou a ouvir aqui um Elliot Smith, uns Mercury Rev…”. Ia-me mostrando coisas que iam saindo. Se tivesse estado mais tempo com ele, tinha criado uma noção maior daquilo que se estava a passar. Como tinha um leitor de cassetes, fazia-me umas mixtapes para ouvir em casa, em Lagos. Comecei a interessar-me pela música, pelo simples interesse que o fazer música me despertava. Não era uma tentativa de querer cumprir objetivos musicais concretos, era só fazer porque me dava prazer num sentido muito básico. Fazer estas pequenas coisas dava-me prazer, ficava com a sensação de tarefa comprida: “Boa, consegui fazer uma coisa, que não sabia que dava para fazer”.

Para além do som renovado, também a produção deste disco está um pouco mais complexa do que nos anteriores.

Gosto muito da produção de ambos. São escolhas estéticas e sónicas distintas. O Vida Salgada talvez seja um disco mais rough. Nos Acompanhantes de Luxo foi uma opção, mas o cuidado na produção existe em ambos, há é uma tentativa de chegar a um som que se calhar antes não queria fazer. Neste disco trago claramente a voz para a frente, é ela que comanda o disco. Depois tens percussões sempre com um som muito sharp e os instrumentos têm um som muito agradável, é um disco mais hi-fi com um som mais limpo, mas é uma opção estética ligada a uma vontade de transmitir as coisas de uma forma mais inclusiva. O problema do lo-fi é que afasta público de um produto. Queria fazer um disco que comunicasse também para pessoas que podem não estar tão à vontade com este lado da música.

Pode falar um pouco desse processo de pesquisa?

Quando comecei a fazer este disco estava fixado no Por Este Rio Acima do Fausto e a certa altura comecei a descobrir nesse disco um tipo de trabalho rítmico que me interessou. Depois comecei a debruçar-me sobre a música do Zeca [Afonso] e interessou-me o trabalho que faziam. Decidi fazer com este disco o que eles fizeram no tempo deles. Mexeram e remexeram no folclore com a visão do seu tempo e eu gosto de achar que estou a fazer um bocado de uma revisão do folclore no meu tempo. Uma das conclusões que tirei foi que o folclore se aproxima de uma forma transversal entre países. Há ritmos que se aproximam da música africana, como na nossa música tradicional. A maneira como conjugas as situações rítmicas são muitas vezes parecidas. É engraçado perceber que essas proximidades existem porque no fundo [esta tradição] está sempre agarrada a uma vontade de dançar e a um lado catártico de grupo e de estarem todos a dançar a mesma música.

Há muitos músicos da sua geração, uma geração que se volta a ligar à identidade portuguesa, que vão buscar influências ao Fausto, ao Zeca, ao Zé Mário Branco. Porque é que isto está a acontecer agora?
Sinto necessidade de inscrever a música num tempo e num lugar. Acho que a música anglo-saxónica se torna incapaz de o fazer porque se aproxima de uma globalização musical que parece perder o lugar. Se quero falar do meu quarto, do meu sofá ou da minha cama, faz mais sentido que seja em português e faz cada vez mais sentido que esteja ligado a uma tradição portuguesa, nem que seja pelo sentido de tentar adulterar, destruir e reconstruir esta noção de tradição.

O folclore mais tradicional está ligado a uma tradição viril e de masculinidade tóxica, mas os seus temas são o completo oposto. Este contraste é propositado?
Este adulterar de tradições para as poder rescrever é um interesse meu. Apesar de nem todas estas tradições estarem ligadas a uma masculinidade tóxica, há tradições misóginas e machistas porque ainda somos completamente órfãos neste sistema patriarcal. Mas o que estás a dizer é verdade: uso esta ideia de pegar na tradição para poder verbalizar o oposto e dizer “ok, mas a tradição também pode ser assim” sem perder os traços característicos e culturais. É um bocado desconstruir para voltar a construir.

O conceito que trouxe para este álbum faz-me lembrar o trabalho do Orville Peck, um cowboy gay que usa o country e o western para contar as suas histórias.
É muito engraçado fazer um trabalho queer dentro de uma filosofia e um conceito tão másculo. Há sempre uma subversão destes assuntos castiça e é interessante perceber como serão as relações homossexuais dentro do serviço militar, nas equipas de futebol… A homossexualidade é uma coisa que existe desde sempre e que a partir de certa altura passou a ser vista com maus olhos pela Igreja. Houve sempre quem tivesse preferências por pessoas do mesmo género e que tivesse trabalhos totalmente viris como mineiro, cowboy… Acho muito interessante essa ligação, fazer música western com temáticas queer é fixe.

Neste disco há um abandonar da cidade em detrimento do campo.
Acho que isso acontece porque tenho essa ideia de campo em mim. Não como refúgio, quase como um conceito, o lado da tranquilidade que o campo tem e que tento ter na velocidade da cidade.

Esse conceito está ligado ao título, Revezo?
Sim, se bem que o título tem mesmo a ver com a prática agrícola que é o revezo e a ideia de rotação de pasto. É um conceito bonito, teres que deixar uma coisa crescer para depois fazer outra, para poderes usar outra vez e poderes aproveitar aquilo que esteve ali a germinar. 

Quando era mais novo ajudavas os teus familiares em práticas agrícolas?
Em Elvas, no campo, ajudava com algumas coisas: a passear as ovelhas, a dar a ração aos porcos… íamos trocando o gado em função daquilo que o terreno permitia. Se estivesse numa fase muito seca, não dava para ter ovelhas porque elas precisam de mais pasto e tínhamos que optar por porcos, que comem de tudo, podemos dar-lhes toda a porcaria que eles comem. 

Voltando ao álbum, foi com este trabalho que chegou ao Festival da Canção. Como está a ser?
Ainda só passou uma semana desde que a música saiu e já vi que teve mais views do que qualquer outra. O alcance que tem não se compara de todo com o alcance mediático que a minha música costuma ter.

Ir ao festival era um objetivo?
Tinha como objetivo não ir ao festival [risos].Tentei avaliar os ganhos e os riscos. Não sou muito fã da ideia de concurso musical, torna o objeto criativo um objeto de avaliação externa e partidária. As pessoas ficam bairristas e clubistazinhas a querem defender a sua música, não porque gostam, mas porque vai cumprir um objetivo: permite ganhar o Euro 2020. Vamos lá jogar à bola com a canção. As opiniões que tenho visto sobre a minha música variam nesse sentido: “é uma belíssima música”, ou “é uma belíssima música, mas não dá para ganhar o festival”. 

Nesse caso, porque é que aceitou participar?
Achei que podia ajudar a meter um pozinho na engrenagem. Além disso, eles dão um dinheiro que me faz falta, tenho de comer. No futuro acho que isto pode ajudar nos meus concertos, não vou ser hipócrita nem desonesto, é uma montra muito grande. Se calhar vai-me permitir dar espetáculos mais interessantes.

Quanto à apresentação do Revezo o que esperas que possa acontecer?
Vão ser concertos um bocado a crescer. Vamos começar com uma formação mais curta e depois tentar aos poucos acrescentar mais pessoas. Quero apresentar um concerto cheio e dinâmico, tanto musicalmente como a nível de espetáculo, e transmitir algo que seja algo inesquecível e que dê vontade de ir para casa ouvir disco.

E o seu pai, o que acha deste disco?
Ele gosta muito da minha música, mas este foi o disco que gostou menos. Por um lado até fiquei bastante satisfeito: sinto que os pais não devem gostar da música que os filhos fazem. Devia ser “toca um bocado mais baixo” ou um “para lá com essa merda” [risos] e o meu pai sempre me apoiou imenso. Ele adorou o disco anterior; neste, apesar de gostar muito das canções, já me confessou que acha esta abordagem contemporânea ao folclore não é a praia dele e que prefere ir ouvir os Wilco [risos].

Agradecimento:
Le Consulat – Boutique Hotel