Medicina de precisão


A capacidade de analisar de forma massiva os genes de um indivíduo permite antever que a medicina de precisão, exercida na base de um conhecimento genético profundo, deverá tornar-se uma realidade num futuro próximo.


A “medicina de precisão” assenta na ideia de que os cuidados médicos devem ser delineados de forma diferenciada com base nos genes, estilo de vida e envolvente ambiental de cada paciente individual. Esta abordagem não é nova, sendo praticada, por exemplo, nos casos de transfusões ou transplantes, que requerem que os dadores tenham características sanguíneas compatíveis com os pacientes. No entanto, a capacidade de analisar de forma massiva os genes de um indivíduo permite antever que a medicina de precisão, exercida na base de um conhecimento genético profundo, deverá tornar-se uma realidade num futuro próximo.

A informação hereditária contida nos nossos genes, i.e. no nosso genoma, encontra-se codificada na forma de sequências de quatro “letras” de DNA. Se quiséssemos passar para o papel toda a informação contida no nosso genoma individual, necessitaríamos de cerca de 3 mil milhões destas quatro letras, o que equivaleria a uma enciclopédia com 1000 volumes, cada um com umas generosas 1000 páginas. Nesta megaenciclopédia encontraríamos todas as instruções que determinam a nossa constituição e o modo como, melhor ou pior, o nosso corpo funciona. Herdamos metade do genoma de cada um dos progenitores aquando da fecundação. Nesse processo, por vezes ocorrem erros na passagem de informação (i.e. mutações). Se muitas destas “gralhas” são inócuas ou até benéficas, outras existem que, mesmo sendo mínimas, podem causar doenças graves. Por exemplo, condições como a anemia falciforme ou o daltonismo radicam num único erro numa letra específica do genoma. Já outros problemas médicos encontram-se associados a uma combinação de mutações múltiplas com efeitos decorrentes do estilo de vida e de fatores ambientais [1].

A capacidade de sequenciar, i.e. de “ler”, o genoma de um indivíduo tornou-se realidade em 2003 com a conclusão do Projeto Genoma Humano. Este marco assinalável da ciência contribuiu de forma decisiva para identificar os erros do genoma associados a muitas doenças genéticas. Como resultado prático deste conhecimento desenvolveram-se cerca de 2 mil testes genéticos que permitem confirmar diagnósticos, identificar portadores de mutações ou prever doenças futuras. Uma descoberta particularmente relevante foi a constatação de que cerca de 85% das mutações causadoras de doenças ocorrem em regiões críticas específicas que totalizam 1,1% do genoma. O facto de estas gralhas tenderem a acumular-se sempre nas mesmas “páginas” do genoma indica que não é preciso ler a “enciclopédia” toda para encontrar os erros mais frequentes. O Projeto Genoma Humano demorou mais de uma década e custou cerca de 3 mil milhões de dólares. Desde então, a tecnologia evoluiu, tornando-se muito mais rápida e barata, sendo hoje possível “ler” um genoma num dia por cerca de 1000 dólares. A análise de genomas começa assim a entrar aos poucos na prática médica, sendo especialmente indicada no diagnóstico de doenças raras que não são detetáveis por técnicas convencionais, como se ilustra no caso seguinte.

Em 2015, uma menina de 15 meses entrou no Hospital da Universidade de Duke (EUA) com sintomas de uma doença neurológica progressiva [2]. Sem um diagnóstico claro, e após um tratamento infrutífero, o caso foi encaminhado para o Centro de Variação do Genoma da universidade. Não existindo uma suspeita específica, a opção passou por sequenciar 33 milhões de “letras” da zona crítica do genoma. Como resultado identificaram-se erros associados a uma deficiência severa de vitamina B2, a síndrome de Brown-Vialetto-Van Laere. A doença é particularmente difícil de diagnosticar por apresentar sintomas coincidentes com outras patologias e níveis de vitamina B2 no sangue normais. De imediato foi prescrito um tratamento à base de suplementos de vitamina B2 que permitiu reverter a doença ao fim de poucos meses [1].

O diagnóstico de uma doença genética não constitui de todo uma garantia de que seja possível tratar de forma eficaz um paciente. No entanto, o caso descrito demonstrou de forma clara que sem a sequenciação de uma (pequena) parte do genoma, o diagnóstico teria sido improvável, e o desfecho certamente infeliz. A tendência futura aponta, assim, para que a sequenciação e interpretação do genoma se torne uma prática rotineira de suporte à prática clínica nos casos de suspeita de doença genética. A previsível expansão e popularização desta medicina de precisão informada na sequenciação de genomas acarreta duas questões conexas particularmente importantes. De facto, a enxurrada de dados expetável e as questões da privacidade e da segurança obrigarão ao desenvolvimento e instalação de capacidades de análise e gestão sem precedentes num contexto clínico.

Os avanços científicos, juntamente com a capacidade de gerir e analisar enormes conjuntos de dados, apresentam hoje uma oportunidade única para tornar a medicina de precisão uma realidade. Mais do que simplesmente identificar uma doença genética particular, a visão é a de que, no admirável mundo novo que se avizinha, será possível introduzir o genoma e dados sobre estilo de vida e envolvente ambiental de um paciente num computador e obter, por intermédio de inteligência artificial, um diagnóstico e identificação das regiões do genoma problemáticas. Essas informações permitirão então aos médicos identificar fármacos diferenciados ou mesmo corrigir de forma cirúrgica as gralhas no genoma.

[1] Piore, A. (2019) Making Sense of the Genome, at Last, Nautilus, dezembro.

[2] Petrosvski et al., (2015) Exome sequencing results in successful riboflavin treatment of a rapidly progressive neurological condition, Cold Spring Harbour Molecular Case Study 1: a000257.

 

Professor no Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt


Medicina de precisão


A capacidade de analisar de forma massiva os genes de um indivíduo permite antever que a medicina de precisão, exercida na base de um conhecimento genético profundo, deverá tornar-se uma realidade num futuro próximo.


A “medicina de precisão” assenta na ideia de que os cuidados médicos devem ser delineados de forma diferenciada com base nos genes, estilo de vida e envolvente ambiental de cada paciente individual. Esta abordagem não é nova, sendo praticada, por exemplo, nos casos de transfusões ou transplantes, que requerem que os dadores tenham características sanguíneas compatíveis com os pacientes. No entanto, a capacidade de analisar de forma massiva os genes de um indivíduo permite antever que a medicina de precisão, exercida na base de um conhecimento genético profundo, deverá tornar-se uma realidade num futuro próximo.

A informação hereditária contida nos nossos genes, i.e. no nosso genoma, encontra-se codificada na forma de sequências de quatro “letras” de DNA. Se quiséssemos passar para o papel toda a informação contida no nosso genoma individual, necessitaríamos de cerca de 3 mil milhões destas quatro letras, o que equivaleria a uma enciclopédia com 1000 volumes, cada um com umas generosas 1000 páginas. Nesta megaenciclopédia encontraríamos todas as instruções que determinam a nossa constituição e o modo como, melhor ou pior, o nosso corpo funciona. Herdamos metade do genoma de cada um dos progenitores aquando da fecundação. Nesse processo, por vezes ocorrem erros na passagem de informação (i.e. mutações). Se muitas destas “gralhas” são inócuas ou até benéficas, outras existem que, mesmo sendo mínimas, podem causar doenças graves. Por exemplo, condições como a anemia falciforme ou o daltonismo radicam num único erro numa letra específica do genoma. Já outros problemas médicos encontram-se associados a uma combinação de mutações múltiplas com efeitos decorrentes do estilo de vida e de fatores ambientais [1].

A capacidade de sequenciar, i.e. de “ler”, o genoma de um indivíduo tornou-se realidade em 2003 com a conclusão do Projeto Genoma Humano. Este marco assinalável da ciência contribuiu de forma decisiva para identificar os erros do genoma associados a muitas doenças genéticas. Como resultado prático deste conhecimento desenvolveram-se cerca de 2 mil testes genéticos que permitem confirmar diagnósticos, identificar portadores de mutações ou prever doenças futuras. Uma descoberta particularmente relevante foi a constatação de que cerca de 85% das mutações causadoras de doenças ocorrem em regiões críticas específicas que totalizam 1,1% do genoma. O facto de estas gralhas tenderem a acumular-se sempre nas mesmas “páginas” do genoma indica que não é preciso ler a “enciclopédia” toda para encontrar os erros mais frequentes. O Projeto Genoma Humano demorou mais de uma década e custou cerca de 3 mil milhões de dólares. Desde então, a tecnologia evoluiu, tornando-se muito mais rápida e barata, sendo hoje possível “ler” um genoma num dia por cerca de 1000 dólares. A análise de genomas começa assim a entrar aos poucos na prática médica, sendo especialmente indicada no diagnóstico de doenças raras que não são detetáveis por técnicas convencionais, como se ilustra no caso seguinte.

Em 2015, uma menina de 15 meses entrou no Hospital da Universidade de Duke (EUA) com sintomas de uma doença neurológica progressiva [2]. Sem um diagnóstico claro, e após um tratamento infrutífero, o caso foi encaminhado para o Centro de Variação do Genoma da universidade. Não existindo uma suspeita específica, a opção passou por sequenciar 33 milhões de “letras” da zona crítica do genoma. Como resultado identificaram-se erros associados a uma deficiência severa de vitamina B2, a síndrome de Brown-Vialetto-Van Laere. A doença é particularmente difícil de diagnosticar por apresentar sintomas coincidentes com outras patologias e níveis de vitamina B2 no sangue normais. De imediato foi prescrito um tratamento à base de suplementos de vitamina B2 que permitiu reverter a doença ao fim de poucos meses [1].

O diagnóstico de uma doença genética não constitui de todo uma garantia de que seja possível tratar de forma eficaz um paciente. No entanto, o caso descrito demonstrou de forma clara que sem a sequenciação de uma (pequena) parte do genoma, o diagnóstico teria sido improvável, e o desfecho certamente infeliz. A tendência futura aponta, assim, para que a sequenciação e interpretação do genoma se torne uma prática rotineira de suporte à prática clínica nos casos de suspeita de doença genética. A previsível expansão e popularização desta medicina de precisão informada na sequenciação de genomas acarreta duas questões conexas particularmente importantes. De facto, a enxurrada de dados expetável e as questões da privacidade e da segurança obrigarão ao desenvolvimento e instalação de capacidades de análise e gestão sem precedentes num contexto clínico.

Os avanços científicos, juntamente com a capacidade de gerir e analisar enormes conjuntos de dados, apresentam hoje uma oportunidade única para tornar a medicina de precisão uma realidade. Mais do que simplesmente identificar uma doença genética particular, a visão é a de que, no admirável mundo novo que se avizinha, será possível introduzir o genoma e dados sobre estilo de vida e envolvente ambiental de um paciente num computador e obter, por intermédio de inteligência artificial, um diagnóstico e identificação das regiões do genoma problemáticas. Essas informações permitirão então aos médicos identificar fármacos diferenciados ou mesmo corrigir de forma cirúrgica as gralhas no genoma.

[1] Piore, A. (2019) Making Sense of the Genome, at Last, Nautilus, dezembro.

[2] Petrosvski et al., (2015) Exome sequencing results in successful riboflavin treatment of a rapidly progressive neurological condition, Cold Spring Harbour Molecular Case Study 1: a000257.

 

Professor no Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt