Madonna  e o Coliseu como uma sala de fados

Madonna e o Coliseu como uma sala de fados


Terminados os concertos por solo americano, Madonna inaugura em Lisboa a digressão europeia de apresentação do seu último disco numa série de oito concertos. É o regresso da rainha da pop à cidade de Madame X. Um disco com o ADN de Lisboa, mas não apenas isso. Que Madonna é esta, então, que atua já…


“Aquilo que mais magoa/ é que eu não estava perdida”. Retirando-lhe o contexto, poderia julgar-se que se trata de versos saídos de uma música de fado castiço da Lisboa dos anos 1940. Mas é Madonna que os canta assim, em Extreme Occident, num português com sotaque americano, entre dedilhados de uma guitarra portuguesa. É uma das 15 faixas da versão deluxe de Madame X, o seu mais recente disco, lançado em junho do ano passado, e que a rainha da pop diz ter sido influenciado pelas suas vivências em Portugal.

Quando a cantora anunciou no seu Instagram que Lisboa seria a inspiração do seu próximo disco – “mal posso esperar para mostrar tudo aquilo que me inspirou em Lisboa”, partilhava há exatamente um ano –, a onda de atenção mediática que se tinha levantado quando se mudou para Portugal só veio intensificar-se. Mas apesar de ter chegado ao número 1 na lista de vendas da Associação Fonográfica Portuguesa, sentiu-se uma desilusão no ar. Madonna até estava vestida de preto na capa do disco, mas esse seria (aparentemente) o único ponto de contacto com Amália. “Ninguém estaria certamente à espera que, de repente, Madonna se transformasse em cantora de fado ou de kuduro ou que cantasse em língua portuguesa de forma imaculada”, escreveu Vítor Belanciano no Público, na semana em que foi lançado Madame X.

Da mesma maneira que, como notava no mesmo artigo, no início da sua carreira Madonna mesclava as várias influências às quais estava exposta – “pós-punk, música de dança, hip-hop e sons latinos” –, também em Madame X se torna num reflexo do que se consome em Portugal, do mais óbvio, como o fado, a influências que não têm origem necessariamente nacional.

A guitarra portuguesa do jovem Gaspar Varela e as temáticas dramáticas do fado podem estar presentes, mas dividem espaço com influências de música dos PALOP. Desde Cabo Verde, com a morna, que se tornou Património da Humanidade em dezembro do ano passado (a própria admite ser fã de Cesária Évora, expoente máximo deste estilo musical) ou o batuque, numa colaboração com a Orquestra de Batukadeiras de Portugal; ao Brasil, com a contribuição de Anitta, a oferecer um twist funk e kuduro à faixa Faz Gostoso da luso-brasileira Blaya; ou ainda à Guiné-Bissau, com a participação de Kimi Djabaté, que empresta o crioulo a Bella Ciao (na versão deluxe do álbum).

Mas não é apenas isto que surge no novo disco de Madonna. Seria inocente julgar que lá porque Portugal e os seus músicos locais influenciaram o seu disco, uma das mais bem-sucedidas artistas do mundo da pop estaria alheada do resto da música que se faz no planisfério. Daí ouvirmos o trap, com colaborações de Quavo, membro dos Migos, e Swae Lee, e até do colombiano Maluma, que este ano está nomeado para melhor álbum de pop latino com o seu 11:11.

Madame X é, então, um álbum assumidamente global, cantado a três línguas – inglês, português e castelhano –, com uma personagem central: Madame X (nome recuperado da sua professora de dança Martha Graham, que aos 19 anos a desafiou a ser um mistério todos os dias), que num vídeo de apresentação do disco Madonna descreve como uma agente secreta. “Viajando em torno do mundo. Trocando de identidades. Lutando por liberdade. Trazendo luz a lugares escuros. Ela é uma dançarina. Uma mestra. Uma chefe de Estado. Uma dona de casa. Uma cavaleira. Uma prisioneira. Uma estudante. Uma mãe. Uma filha. Uma professora. Uma freira. Uma cantora. Uma santa. Uma prostituta. Uma espia na casa do amor”.

Já as letras adquirem, dado o pendor político a que há muito nos habituou, um tom no mínimo questionável quando olhamos para um calendário e nos apercebemos de que estamos em 2020, como notou Rich Juzwiak na Pitchfork, que deu uma classificação de 4,8 (em 10) ao álbum. “Killers Who Are Partying abre com uma comédia não intencional: Madonna refere pessoas homossexuais como ‘os gays’ [‘I will be gay, if the gay are burned’] como se tratasse de alces ou de algo parecido”. O mesmo tipo de raciocínio se aplica na mesma faixa a África, ao islão, a Israel, aos nativos americanos ou aos pobres: “‘I will be poor, if the poor are humiliated’, canta. Mas não, isso não vai acontecer. Os pobres são humilhados e ela vai ser rica para o resto da vida”, criticou ainda Juzwiak.

mais do que apenas música Com todos os defeitos que se lhe possam apontar, é importante avaliá-la também de perspetivas que transcendem a própria música. Madonna não é apenas música, nem nunca foi. E a verdade é que, como nos anos 1980, a autora de Ray of Hope, Like a Virgin ou La Isla Bonita continua hoje a arriscar. E que, mesmo que já sem o poder inventivo de outrora, apesar de ter encontrado sucessoras em Beyoncé, Taylor Swift ou, mais recentemente, Billie Eilish, o título de rainha da pop não se passa como numa estafeta de uma prova de atletismo.

Prova palpável dessa realeza é a nova abordagem aos espetáculos ao vivo. Intimistas e, por isso, exaustivos. Com a decisão de atuar nesta digressão de Madame X em recintos mais pequenos, num continuar da experiência que encontrou nas casas de fado e de amigos em Lisboa, em Portugal, a escolha óbvia da Altice Arena dá lugar ao Coliseu dos Recreios, que ontem se mostrava já a postos para a receber numa story que partilhou no Instagram. Nessa sala inicia já no próximo domingo, 12 de janeiro, a série de oito concertos com que, depois da América, inaugura a digressão europeia de apresentação do novo disco.

Rob Sheffield, da revista Rolling Stone, que considera que as músicas de Madame X funcionam melhor ao vivo do que em estúdio, escreveu que considera que esta tour é um testemunho “para o génio da sua loucura”.

“Madonna nunca teve medo de arriscar”, escreve na sua reportagem de um dos concertos da digressão americana. “Trinta anos depois de ter incendiado os anos 1980 com o disco basilar Like a Prayer, continua gloriosamente estranha, como sempre”. O jornalista assistiu ao concerto na Brooklyn Academy of Music’s Howard Gilman Opera House e não só elogiou o facto de a artista ter optado por uma sala mais pequena e íntima como a adoção de uma política que não permite a utilização de telemóveis nem que sejam tiradas fotografias. Na sala de concertos em Lisboa, decorada de forma a parecer uma sala de fados, deve ser tomada a mesma decisão.

O crítico de música pop do Los Angeles Times Mikael Wood descreve que, no concerto que viu na sala do The Wiltern, enquanto a cantora contava uma história, um fã na plateia a interrompeu para gritar palavras de amor. “Eu sei que me amas, mas podes calar-te?”, interveio. “Estou a meio de uma história”.

O novo trabalho de Madonna não é sobre a Lisboa e o Portugal que estamos habituados a ver. É sobre as terras de Viriato vistas através dos olhos de uma mulher que percorreu as maiores arenas do mundo e agora quer confessar a sua dor numa sala de fado.

 

A juventude dos 60 

No final de dezembro, Madonna cancelou o último concerto da tour Madame X em solo norte-americano, marcado para Miami, dizendo que estava a sentir uma “dor indescritível”. “Desta vez tenho de ouvir o meu corpo e aceitar que a dor é um aviso”, acrescentou, lembrando que não há vergonha nenhuma em “pressionar o botão pausa”, como qualquer ser humano. Qualquer não será, porventura, pronome que lhe assente – aos 61 anos, a julgar pelo que vai partilhando nas redes sociais , Madonna parece ter descoberto uma elixir da juventude eterna. Uma juventude que lhe vem do estado de espírito, de um cuidado extremo com a saúde e a imagem ou da escolha a dedo de com quem se relaciona?

Pouco tempo depois, a artista partiu para umas férias nas Maldivas, onde foi fotografada com o novo namorado, 36 anos mais novo: Ahlamalik Williams, um bailarino de 25 anos. Nascido a 24 de abril de 1994, e também conhecido como Skitzo, o bailarino já tinha colaborado com a cantora na digressão internacional Rebel Heart Tour, entre 2015 e 2016, e agora faz também parte do “elenco” de Madame X. Antes chegou a supor-se que Madonna teria uma relação com o modelo português Kevin Sampaio, agora com 32 anos, mas a união nunca foi confirmada. A cantora norte-americana é efetivamente conhecida por namorar com homens mais novos, mas uma das últimas relações mais conhecida terá sido porventura a que partilhou com o modelo brasileiro Jesus Luz. Quando se conheceram, em 2009, numa sessão fotográfica, ele tinha 22 e ela 51 anos. Estiveram juntos dois anos.

Tendência à parte, é também conhecida a obsessão de Madonna pela manutenção de uma imagem jovem: não apanha sol, sendo muitas vezes vista a banhos com largas t-shirts, e presta-se a cuidados de beleza que poderão chocar os mais sensíveis. Em novembro partilhou um vídeo em que revelava que, depois de um banho de gelo, nada como um chá de urina para recuperar dos concertos. M. M.