O estereótipo do salazarento “brandos costumes”, em parte para sustentar uma colonização diferente das concretizadas por outras nações europeias e que deveria sobreviver às dinâmicas de independentismo das colónias, foi substituído, em democracia, por uma sustentada narrativa de “Portugal, país seguro”, divergente das realidades brutais que mais se aproximam do patamar de efervescência de uma guerra civil segmentada. Os teóricos “brandos costumes” moveram-se para um quadro de agressividade e violência gratuita, prenúncio das debilidades na educação, nas tradições, no funcionamento das relações sociais e no perfil de vida imposto por novas realidades, mais voláteis, mais superficiais e cada vez mais impessoais. É claro que há quem reduza muitos dos fenómenos à crescente mediatização, às audiências e às redes sociais, mas a existência de diversas expressões de tensão e violência nas relações pessoais, institucionais e sociais tem de ter razões mais profundas.
Há muito que defendemos existir um desequilíbrio na perceção individual e comunitária dos direitos e deveres. Antes do 25 de Abril só tínhamos deveres. Depois de Abril persiste na mente de muitos que só têm direitos. Não haver um equilíbrio percecionado e interiorizado de que cada um tem direitos e tem deveres, é o primeiro passo para não haver um respeito adequado pelas normas de funcionamento da sociedade e pelas esferas de liberdade dos outros com quem nos relacionamos.
Não é normal um país com pouco mais de 10 milhões de cidadãos ter, num ano, 30 mulheres mortas em resultado de violência doméstica, como aconteceu em 2019. Espanha, com cerca de 46 milhões de cidadãos, registou 55 vítimas mortais de violência doméstica. Cada vida é uma perda, estes vergonhosos conjuntos são uma barbárie.
Não deveria ser normal um país que gosta de se reafirmar como uma referência da segurança pública, não ter um investimento constante e sustentado nas suas forças de segurança, não ter um quadro de recursos humanos e materiais estabilizado e não haver um adequado reconhecimento do exercício pela comunidade. Ao invés, com fama de “brandos costumes”, assistimos a uma degradação da autoridade da autoridade, a ineficiente funcionamento da justiça, com uma fragilização da função e a abertura de espaço a populismos com consequências eleitorais e sociais. Banalizou-se a violência com as forças de segurança, no quadro de contextos sociais de grande exigência, por regra, desconhecidos por quem confina a sua existência ao ecossistema da secretária ou à proclamação teórica dos direitos, liberdades e garantias.
Não deveria ser normal, num país que está tão necessitado de conhecimento, de qualificação e de inovação, assistir a fenómenos de violência, de desrespeito e de constante desafio da função de professor nas escolas de Portugal. A formalidade cedeu todo o espaço a informalidade, sem linhas vermelhas, em linha com as demissões de participação do processo educativo que ocorre em ambiente familiar, porque não há tempo, há muito digital, há pouca atenção e outras expressões do padrão de frenesim quotidiano das famílias portuguesas.
Não deve ser normal, num país tão necessitado de serviços públicos que correspondam às necessidades da população, das dinâmicas demográficas, das novas realidades e do território, que numa área tão importante como a da saúde, os casos de violência com os profissionais esteja a aumentar de forma galopante ao longo dos últimos anos.
Em vários setores, multiplicam-se os casos de incivilidades, de disrupção nas relações sociais, de violência e de uma tensão e agressividade sem senso, sem nexo e sem sentido.
“Brandos costumes”, o tanas! Estamos a ficar mais agressivos que nunca. Com as pessoas, na rua, na estrada, na repartição e em demasiados espaços e oportunidades do dia-a-dia. Tudo é uma incessante competição, em que só a nossa esfera de liberdade conta, só os nossos interesses são relevantes, só os nossos fins podem ser servidos pelos meios disponíveis. E dá disparate.
Em breve, dentro de apenas quatro anos, perfazem-se 50 anos sobre a Revolução de Abril e implantação do regime democrático. Será um tempo de muitos balanços, comemorações e afins, mas era importante gerar condições para rumar ao centenário com outro quadro de referência, de realidades e de perceções que pudessem inverter este quadro trágico de crescente agressividade e violência, com emergente banalização do insulto, da agressão e da morte.
Sem a adequada perceção de exigência de respeito pelas esferas individuais, das nossas e das dos outros, não será fácil gerar ambientes sociais positivos em que as expressões negativas de agressividade, de criminalidade e de violência, sejam marginais.
O drama é que nada disto se concretiza por decreto. Não o fizemos em 46 anos, não o fazemos em quatro anos, por ocasião do meio século, mas é bom que se invertam as escaladas de violência, os comportamentos individuais e o sentido de respeito pelos outros. Se nada for feito continuaremos a insistir em registos de crescente desrespeito, agressividade e violência, que podendo ter maior projeção mediática e nas redes sociais, não deixa de existir. É preciso encontrar renovados equilíbrios nos direitos, dos deveres, na participação e na responsabilização individual e comunitária.
Também aqui se os partidos tradicionais não agirem em conformidade com a exigência e os desafios, novas realidades emergirão para agarrar as oportunidades e os espaços deixados por preencher.
Como democrata, não creio que possa ser esse o caminho, razão para que se mudem as atitudes, se reforce o respeito pelo desempenho de funções do Estado e se reequilibre a perceção dos direitos e dos deveres.
Não é fácil, mas basta um bem cada vez mais escasso, a vontade.
NOTAS FINAIS
GALHETA. A escalada eleitoral norte americana volta a estar pontuada por ações militares que assegurando o conforto a uma certa América, conferem poder aos titulares em funções, enquanto pulverizam os frágeis equilíbrios em vários pontos do planeta, em especial, no Médio Oriente. O toca e foge de Trump é bom para a economia, para o sufrágio e para o ego, mas volta a ser um desastre para o mundo.
REGUADA. Ao longo dos últimos anos despertámos para a realidade das notícias falsas ou truncadas, impulsionadas pela digitalização crescente e pelos suportes das redes sociais. E surgiram os Polígrafos e afins determinados em certificar a veracidade das informações. Um dia destes, deveria surgir um impulso de triagem e monitorização das notícias determinadas por interesses particulares, amiúde dos próprios órgãos de comunicação social. Podia ser que os portugueses compreendessem melhor algumas das dinâmicas noticiosas em curso, nos media, na banca e na sociedade.
Escreve à segunda-feira