“Construir uma vida é difícil, mas destruí-la 
demora um segundo”

“Construir uma vida é difícil, mas destruí-la 
demora um segundo”


Há um mês e meio, o i fez uma reportagem sobre o aumento do número de tendas em Lisboa. Agora, com o mau tempo, alguns sem-abrigo mudaram de sítio, outros dizem ser obrigados a tirar as suas tendas. Pelas ruas, quem não tem teto e quem trabalha diretamente com os sem-abrigo diz que são cada…


Alfredo, Maria Eduarda, Ricardo, Maria José, Miguel, António, Nuno, Maria João, Paulinho, Mário. Aqui não há dois nomes iguais, há sim dez histórias que se cruzam – na rua. Os casos de tenda, colchão e cobertor multiplicam-se pela capital, mas, numa altura em que o tema dos sem-abrigo fez correr muita tinta nos jornais – depois do caso do bebé encontrado no ecoponto –, quem vive na rua diz que continua tudo igual e que as ajudas tardam a chegar.

Nas últimas noites, no Cais do Sodré, junto ao rio Tejo, o Cristo Rei desvanece-se entre o nevoeiro. Mas, entre as discotecas Urban Beach e Lust in Rio, a preocupação vai muito além da chuva e do vento, que leva a roupa de quem ali vive em tendas. Depois da última reportagem sobre o aumento do número de tendas em Lisboa, o i revisitou os lugares e o mediatismo em torno dos sem-abrigo traduziu-se apenas numa mudança de local. Há pouco mais de um mês contavam-se sete tendas. Hoje restam duas. E o mesmo acontece pela cidade de Lisboa – as pessoas vão mudando de sítio. 

Alfredo e Maria Eduarda resistem e continuam a viver ali. Somam quase dois meses de rua, oito de namoro, e a única coisa que mudou foi a cobertura da tenda, “por causa do vento e da chuva”. “Disseram-nos que temos de sair daqui até ao final do mês, mas eu não vou desmontar nada”, garantiu Alfredo, enquanto espera que a mulher saia do trabalho. As tendas que ali faltam pertenciam a pessoas que foram para outro lugar assim que perceberam que tinham de sair. “O Ricardo e a Maria José foram para Santa Apolónia”, acrescentou, e apontou para uma tenda que, já que não pode estar ali, passou para o lado do parque de estacionamento junto à discoteca. 

“Ajuda? Ali as da Santa Casa [da Misericórdia] disseram que posso ir para Xabregas, mas eu não vou”, disse Alfredo. Em Xabregas fica um centro de acolhimento temporário, onde quem não tem um teto pode dormir, tomar banho e comer. No entanto, há muitos sem-abrigo que recusam esta ajuda, justificando a falta de condições e os roubos que existem naquele espaço. 

Sobre mudanças e ajudas, a Câmara Municipal de Lisboa aprovou ontem o Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem-Abrigo – um investimento de 14,5 milhões de euros, a aplicar até 2023, que prevê a atribuição de mais 400 casas para as pessoas que estão sem teto. “É o maior investimento de sempre nesta área, numa resposta sem igual na redução das desigualdades. A nossa esperança é que haja outras cidades a seguir este exemplo”, disse ontem Manuel Grilo, vereador da Educação e dos Direitos Sociais. 

Um segundo para destruir a vida

As portas das traseiras da Santa Casa da Misericórdia, numa rua paralela à Avenida Almirante Reis, só abrem às dez da manhã para os banhos. Há quem chegue mais cedo para ser o primeiro e há quem viva mesmo em frente e só precise de ir deitando o olho para garantir que consegue tomar banho naquele dia, como faz Miguel. Enquanto não chega a hora, o homem de 46 anos aproveita também para comer o que deixam as associações que fazem voluntariado. E para beber o vinho que comprou no dia anterior no supermercado. Admite que “tem um problema com álcool” e que já pediu para ser internado no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, mais conhecido como Júlio de Matos. Está à espera. Durante o dia arruma carros, pede moedas, “mas roubar, nunca”, sublinha. 

“Construir uma vida é muito difícil, mas para a destruir só é preciso um segundo”, diz Miguel, enquanto recorda a sua história. Está na rua há seis meses e não tem família em Portugal: “Fui deportado dos Estados Unidos porque não tinha os documentos em dia e fui apanhado pela polícia em excesso de velocidade”. Do outro lado do oceano deixou a mulher, com quem fala regularmente, mas sem nunca dizer que está na rua.

Dos Estados Unidos veio também Nuno, que há um mês e meio, quando o i fez a última reportagem, vivia numa tenda dois lugares ao lado de Miguel. Na altura, dizia que já só queria sair de Portugal, estando só à espera do visto. Hoje, a tenda que lhe custou 40 euros desapareceu. Quem também saiu foi o senhor António, de 65 anos, que agora, segundo os antigos parceiros, está a viver na Santa Casa da Misericórdia. Sem casa há dois anos, o senhor António nunca disse ao filho onde estava, nem como estava verdadeiramente. A vergonha ajudava à imaginação e inventava muitas desculpas: “Sabes, o meu senhorio não gosta nada que eu leve visitas lá a casa”, disse no mês passado. 

À medida que Miguel conta a sua história, vai chorando. Mas logo pede um cigarro a uma das funcionárias que trabalham na Santa Casa da Misericórdia, que já conhece dos almoços e jantares que toma naquele espaço. Uma das trabalhadoras confirmou aquilo que se ouve nas ruas, entre tendas e colchões: “Sim, sim, há cada vez mais pessoas a passar dificuldades e a viver na rua”. A contagem oficial da Câmara Municipal de Lisboa é de 2018 e dá conta de 361 pessoas sem teto e 1967 pessoas sem casa, que vivem em casas de abrigo temporário. 

Casos não identificados: A vergonha

Os dados que transformam os sem-abrigo em números revelam que os casos são cada vez menos ao longo dos anos. Entre 2015 e 2017 houve uma redução de 50% do número de pessoas em situação de sem-abrigo, a viver na rua. Mas há pessoas que não são transformadas em números. Vivem na sombra da sombra e não estão ainda sinalizadas. “Porquê? Não sei, tenho vergonha de pedir ajuda”, contou Maria João, que está há umas semanas na rua e ainda não teve coragem para ir à Santa Casa da Misericórdia contar a sua história. Agora vive na Calçada do Carmo, por baixo de uma das entradas da estação de comboios do Rossio, onde as tendas se multiplicam.

Dorme ao lado de Paulinho, conhecido como “o rei dos sem-abrigo” – nome dado por viver há cerca de 30 anos na rua. 
Maria João teve uma papelaria que encerrou. Veio para Lisboa tomar conta do pai, que morreu há pouco tempo vítima de cancro, e depois disso quis sair de casa por desavenças com a mãe. Ficou com a roupa que tinha no corpo e com cerca de 200 euros, dinheiro que diz ter sido roubado nas primeiras noites em que dormiu na rua. Com 45 anos, Maria João só quer “ser feliz” e sair dali, daquele espaço que não a deixa dormir durante a noite, “sempre com medo que chegue alguém”. Falta-lhe a coragem para pedir ajuda, mas tem noção de que é preciso fazê-lo. 

A propósito da identificação dos sem-abrigo, Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, avançou no final do mês de novembro que está a ser desenvolvida uma plataforma para identificar, em tempo real, todos os casos de pessoas que estão a viver na rua para que exista uma melhor articulação com as associações que atuam no terreno. 

Paulinho diz também que há cada vez mais gente a dormir na Estação do Rossio, com ou sem tenda. “Agora é normal, porque é um sítio abrigado, dá para dormir sem apanhar chuva”, diz o “rei dos sem-abrigo”. Mas há um lugar que vai ficar vago: a pequena tenda verde, onde há um mês estava uma mulher a ler um livro em alemão, vai desaparecer. E as notícias são boas. Depois de esperar quatro meses, conseguiu arranjar vaga no centro de desintoxicação em Palmela e vai deixar a rua no final do mês. “No meu caso correu bem, mas acho que para os outros não corre assim tão bem”, disse.