Uma Rapariga Fácil. “Encontrei na Zahia  a encarnação de uma certa liberdade”

Uma Rapariga Fácil. “Encontrei na Zahia a encarnação de uma certa liberdade”


A jovem que há dez anos ficou conhecida pelo escândalo de prostituição em que se viram envolvidos dois jogadores da Seleção Francesa é uma das protagonistas do filme de Rebecca Zlotowski que chegou ontem às salas. O i falou com a cineasta em Lisboa.


“La chose la plus importante à toute la vie est le choix d’un métier: le hasard en dispose”. É com uma citação de Pascal e uma praia de Cannes como pano de fundo que Rebecca Zlotowski, realizadora de Grand Central (2013) e Planetário (2016), inicia o seu quarto filme: uma história de verão junto ao mar, um coming of age que poderia ser um coming of age como tantos outros. No verão em que Naïma (Mina Farid) faz 16 anos, o verão em que procura um sentido para o seu futuro, recebe a visita de uma prima de 22, que entretanto se tinha mudado para Paris, de onde regressa exibindo a nova vida de acompanhante de luxo. Poderia ser apenas um coming of age este, se essa prima, Sofia, não fosse interpretada por Zahia Dehar. Figura da cultura pop francesa, como a descreve a realizadora, desde que em 2009, ainda adolescente, esteve no centro do escândalo de prostituição envolvendo Franck Ribéry e Karim Benzema, então jogadores da Seleção Francesa. Das capas dos tabloides desse tempo, Dehar passou este ano, com a estreia de Uma Rapariga Fácil (que integra também Nuno Lopes e Benoît Magimel no elenco) em Cannes, para as capas das revistas das elites. “E Deus criou Zahia”, escreveu por exemplo a Les Inrockuptibles. Sinal de que estava cumprida a missão a que se tinha proposto Rebecca Zlotowski, que não escolheu Dehar para este papel, mas o escreveu para ela.

 

Assim que terminei de ver o filme, regressei a O Mito da Beleza, de Naomi Wolf. Um livro com quase 20 anos mas que cujas palavras continuam a ecoar-nos e que dialogam com o que encontramos aqui. Às tantas, sobre esta nova prisão em que se transformou a ideia de beleza, como se o objetivo fosse fazer as mulheres odiarem os seus corpos…

… e de se detestarem entre elas também…

… a certa altura escreve Naomi Wolf [tradução do inglês]: “Não podemos usar um batom sem nos sentirmos culpadas. […] Temos de separar do mito [da beleza] o que a rodeia e tomou como refém. […] A verdadeira questão não tem nada a ver com se as mulheres usam maquilhagem ou não, se ganham peso ou perdem, se fazem plásticas ou as evitam, se se arranjam ou não, se fazem das suas roupas e rostos e corpos obras de arte ou ignoram qualquer tipo de adorno. O verdadeiro problema é a nossa falta de escolha”. A personagem da Sofia [Zahia Dehar] encontra a sua forma de liberdade, mas não deixa de estar encurralada nela ao mesmo tempo. Como também a Calypso, a dona da mansão que visitam, está também presa na sua própria… 

… pele. Quando conheci a Zahia Dehar encontrei nela a encarnação de uma certa liberdade, de uma certa coragem. Foi ela que me abriu um caminho, nesse encontro, para fazer um filme em torno dela. A Sofia é evidentemente um produto de ficção que se sobrepõe à mulher que é Zahia Dehar. Mas no início comecei por olhar para esta mulher e a questionar-me sobre por que é que ela me interessava. Porque havia qualquer coisa que me parecia comentar o mundo em que vivemos, o mundo pós #MeToo em que ela estava e em que hoje em dia ainda a constrange para contar a representação que também é o estereótipo, para desconstruir o estereótipo e [pensar] como podemos desconstruir esse estereótipo, esse arquétipo. 

Da beleza – ou de um tipo particular de beleza.

Sim, mas não apenas da beleza. A beleza surge porque, nela, a beleza é muito problemática. Para três quartos dos espetadores do filme é uma mulher que não está do lado da beleza. Quando digo três quartos é porque penso que o público que tem acesso ao cinema de autor é um público que não é recetivo à cultura pop, ou àquela parte em que se insere a Zahia, e portanto a Sofia. Uma personagem muito contemporânea, materialista, que não tem qualquer problema com reivindicar um artifício por exemplo com o seu corpo – mesmo que a Sofia não seja uma personagem construída pela estética, o corpo dela é o corpo dela. Ela recupera essa imagem da mulher que utiliza o artifício para se apropriar do seu corpo, para se apropriar da sua imagem, para se apropriar do seu reflexo, para se agradar a si antes dos outros e para aceder, através disso, ao poder. Isso hoje em dia não seria uma transgressão porque a mulher deve ser bela para os outros e não para ela mesma. E vemos o ódio que pode suscitar o físico e uma personagem como o seu. O ódio para certos homens do desejo obscuro, como no filme, mas ao mesmo tempo uma certa coragem como a do personagem brasileiro do Nuno Lopes, que tem a coragem de a seduzir, a coragem de a apresentar à Calypso num ato de transgressão social que vem também do poder que ele tem para assumir a sua liberdade. Para simplificar, há um caminho no filme que tem a ver com a classe, com a ascensão de classe, e um outro que é um caminho mais sensual, da libido, relacionado com a beleza. Há um momento em que o Philippe, no barco, lhe pergunta: “Mas se a achas tão bonita porque é que tens de a comprar?”.

 

Pergunta ao Andres [Nuno Lopes].

Sim, e ele fala-lhe de Kant e diz-lhe que o belo não é agradável. Em Kant o belo é absoluto, não é um julgamento de gosto em que dizemos “acho isto bonito” e podemos relativizá-lo culturalmente, e outros dirão “não, não acho bonito” e toda a gente tem razão, não. Ele diz que o belo existe, e que podemos saber que ele existe porque não temos uma forma de lhe poder aceder. E toda a questão do filme é comentar esta ideia de beleza do colecionador, que é o Nuno Lopes no filme. Há um filme em que isto faz eco que é o La Collectionneuse [1967], de [Éric] Rohmer. O que é colecionar homens e colecionar obras de arte, como poderemos imaginar outra forma de nos relacionarmos com o mundo que não seja a do consumidor mas a do amador. Há muitas coisas que faço circular no filme à volta da ideia da beleza: a beleza de encontrar a sua própria forma de se relacionar com o mundo, a beleza de inventar e se apropriar da sua própria forma de se relacionar com os outros, que não são ditadas nem pela lei da moral nem da sociedade ou nem mesmo do que deve ou não deve ser belo. A Mina [Farid, que interpreta a personagem principal, Naïma], também a acho muito bonita.

 

Como também é a Calypso [Clotilde Courau], cada uma à sua maneira.

A Calypso também. De uma certa forma, com a Sofia, há uma sinceridade total na sua transação, daí o seu poder. Ela tem poder sobre a sua sexualidade que troca por uma pulseira, porque ela tem prazer também. E é esse prazer que nos remete para a ideia de que não estamos apenas perante uma transação de prostituição, é isso. Poderemos dizer que toda essa circulação nos leva talvez a esta frase de Montaigne no Viver a Sua Vida [1962] de Godard, com a Anna Karina: “Il faut se prêter aux tous et se donner a soi-même” (devemos prestar-nos a todos, mas darmo-nos a nós próprios). Talvez a relação com a beleza que circula no filme seja uma relação de liberdade, de transgressão, de relação com o poder.

 

A Rebecca e a Zahia já se conheciam quando teve a ideia de fazer este filme?

Eu não a conhecia, havia toda esta história de prostituição à volta dela. Era uma figura muito mediatizada mas que eu não conhecia. Achava-a muito misteriosa: uma mulher muito bonita, árabe, detestada por toda a gente, como uma “pobre idiota”. Ela é toda a encarnação de feminilidade que se opõe à minha: esta imagem de gueixa, o silêncio, a sexualidade à frente da inteligência. Não tem qualquer tipo de problema em mostrar-se dessa forma. Não tenta apagar-se, não tenta esconder-se, procura a feminilidade exacerbada, tenta travestir-se disso, numa estética que é como uma pele à volta da sua sexualidade, do seu físico. Havia qualquer coisa que me fascinava nisso, uma impressão de que disfarçava de si mesma, então comecei a segui-la no Instagram. E foi quando comecei a segui-la, a observar a forma dela de falar, que comecei a achá-la verdadeiramente fascinante.

 

Porquê?

Ela fala de uma maneira que me faz pensar no Éric Rohmer, nos filmes do Éric Rohmer. Ela lembra-me os anos 60. Tudo nela é fabricado como todos nós fabricamos as nossas construções sociais. Eu também fabrico a minha feminilidade. Fabrico-a de uma outra maneira: a da mulher intelectual, feminina mas que não coloca a feminilidade em primeiro lugar. É uma outra relação com a feminilidade.

 

E é interessante perceber como cada mulher sente necessidade de pensar a sua própria construção de feminilidade. Não penso que os homens o façam da mesma forma.

[Dá uma gargalhada] Claro que não! Acho que vivemos um tempo genial porque, pela primeira vez em milhares de anos, é exigido aos homens que pensem sobre a forma como se comportam. E eles dizem: “Agora temos de refletir sobre cada coisa que fazemos”. A minha resposta é: “Bem-vindos ao nosso mundo” [risos]. Fazem-no há cinco minutos. Nós, há centenas de anos que as mulheres se perguntam sobre como se comportar, como se vestir, como dar um sinal de que é sexualmente aberta. A razão pela qual agora há uma espécie de medo a circular no mundo dos homens, para alguns, é que agora têm de pensar. Essa tarefa tem de ser repartida. Sexualmente, intelectualmente, no espaço público. 

 

De volta à Zahia Dehar, que aparece creditada como coargumentista qual foi a participação dela no processo? 

Não foi a Zahia que escreveu os diálogos, mas foram escritos a partir do contacto com ela, daí te-la creditado como coargumentista. Porque o filme veio dela, do contacto com ela, de coisas do passado dela. Mas a Zahia é uma atriz muito respeitadora do trabalho de um artista. Sentia-se até intimidada, porque este era o seu primeiro filme. Portanto, mesmo que a tenha encorajado, ela não se sentia nessa posição… É muito interessante isso nela, aceitar o que lhe propunha sem contestar. Isto é muito particular, penso que vem da personalidade dela: tem uma personalidade que adora dar-se ao prazer, ao serviço de. A aventura dela é tirar partido desse desejo. Como muitas atrizes e atores cujo prazer é receber um texto, não escrevê-lo.

 

Como foi para si olhar para as capas feitas com a Zahia, agora não como a menor envolvida num caso de prostituição mas como atriz num filme estreado em Cannes [na Quinzena dos Realizadores, onde foi distinguido com o prémuio de melhor filme em língua francesa], e em revistas como a Les Inrockuptlibles?

Na capa, foi genial! Achei formidável. E no artigo da Inrockuptiles alguém escreveu “le cinema repart a l’ époque”. Uma época que talvez esteja preparada para que uma mulher como eu tenha poder, mas que não está preparada para que uma mulher como ela o tenha. Mas eu quis fazer um filme com ela, e mudar alguma coisa com ela. E não apenas isso, o filme tem outras camadas de significação, como o conflito de classes. Mesmo esta ideia do cartão postal muito estético, cinéfilo, o filme não é apenas isso, não é apenas uma coisa. Mas há um projeto central no filme: reabilitar uma figura feminina desprezada, reapropriando-se disso. E fico feliz por ter resultado. 

 

Virgine Despentes recorda frequentemente o incómodo que sentiu quando, por volta de 2000, nas entrevistas a propósito da estreia de Baise-Moi [filme que ela própria adaptou do seu romance homónimo com a história de duas jovens mulheres que, marginalizadas pela sociedade, entram numa espiral destrutiva de sexo e violência] a voz da atriz que o protagonizava era constantemente silenciada em entrevistas. Sentiu nalguma ocasião o mesmo tipo de preconceito aqui?

Não foi o caso aqui. A atriz da Virginie Despentes era uma atriz de filmes pornográficos, havia um complexo de superioridade…

 

A Zahia não deixa de ser também uma figura controversa em França.

Penso que quando se olha alguém com lealdade, as pessoas vão ver essa pessoa de forma diferente.

 

Sente que alguma coisa mudou com este seu filme?

Acho que sim. Não estou inteiramente certa de que tenhamos mudado a vida de muitas pessoas. Mas de algumas sim. Em todo o caso, nos media mainstream, é certo que sim. A Inrockuptibles, até o Le Monde publicou uma entrevista à Zahia, “atriz”. Só isto, só o facto de lhe terem dado a palavra, mudou alguma coisa. Isso é certo. Penso que as coisas mudam a partir daí. Estou certa de que, defendida por uma mulher comprometida com o feminismo, não haveria a possibilidade de fazer da Zahia Dehar, mesmo pelo cinismo, alvo de slut shaming. Não é possível escrevê-lo. Pode ser possível pensá-lo, mas não é possível escrevê-lo. E isso significa tudo já. Significa que se travou a possibilidade de escrever coisas desprezíveis, misóginas, falocratas. Isso pode até ter existido mas foi muito minoritário. Globalmente, o projeto foi muito bem compreendido. E a Zahia Dehar foi comparada com ícones do cinema mundial como a Brigitte Bardot, a Claudia Cardinale e outras atrizes italianas. Não foi vista como a jovem objetificada, prostituída e refeita em [cirurgias] plásticas. Quando decidi fazer o filme, houve pessoas que me disseram: “Ela é um pouco monstruosa, não?” Talvez seja “monstruosa” para as burguesas brancas parisienses. Para a integralidade dos franceses, é uma jovem muito bonita. Como são as Kardashians. E é verdade que há muita coragem por parte da Zahia em mostrar-se como é.

 

Também essa reação de aversão é trazida para o filme, incorporada pela Calypso. E regressamos à escolha destas três atrizes para este triângulo de mulheres: Naïma, Sofia e Calypso.

A Naïma não é uma personagem sexualizada, isso vê-se. É uma jovem rapariga que ainda não explora ainda a sua sexualidade. Poderia ter escolhido uma atriz muito sexualizada para o papel da prima mais nova da Sofia. Mas não quis. É ela que nos diz que o tema do filme não é a sexualidade, que este não é um coming of age sexual, é um coming of age do destino: que profissão vais escolher? Que função vais ter no mundo, independentemente da tua sexualidade? A Clotilde Courau, que interpreta a Calypso é a atriz extraordinária que ficou conhecida em França por se ter casado com um príncipe. E isso é uma coisa que faz parte do imaginário que ela evoca: a atriz que se casou bem. Também ela acedeu à propriedade pela sua sexualidade, mas da forma tradicional. 

 

E isso leva-nos de volta a Virgine Despentes e à forma como coloca a prostituição e o casamento nos dois pratos da mesma balança, no sentido em que também o casamento pode ser uma transação.

Há muitos casamentos que são igualitários. Mas desde o século XIX que o casamento é também uma forma de transação. O problema da prostituição é que a torna demasiado evidente. Colocar a Calypso, uma mulher que se acha muito livre na sua grande propriedade cheia de obras de arte e que repreende uma rapariga porque não se parece com ela mas com uma prostituta… é também uma forma de colocar em confronto essas duas visões: a da dependência e da autonomia do poder feminino.

 

E de nos confrontar a todos com…

… a hipocrisia da sociedade. É uma forma de olhar de frente a hipocrisia que pode existir entre as mulheres.