É muito raro um Presidente da República intervir solicitando entendimentos partidários em relação à aprovação de qualquer diploma. Marcelo resolveu, porém, fazê-lo em relação ao Orçamento do Estado para 2020. Depois de saber que Costa estava a negociar o Orçamento de Estado com o PSD Madeira, o PAN e o Livre, em ordem a perfazer os 116 deputados necessários, Marcelo veio a público criticar esta iniciativa. A seu ver, o Orçamento do Estado deveria ser aprovado pela maioria de esquerda no parlamento, em ordem a impedir “soluções pontuais, negociadas caso a caso, que são sempre menos estáveis”. O Presidente defendeu claramente a bipolarização, apelando à reconstrução da maioria de esquerda na assembleia, e deixando que possa haver “uma alternativa que se vá formando de centro-direita e de direita para o futuro”.
É compreensível esta preocupação do Presidente perante a perspectiva de termos em 2020 um novo orçamento limiano, aprovado a troco de um novo hospital e de ligações marítimas e aéreas para a Madeira. Se o Orçamento para 2020 for aprovado nestas condições, haverá muito poucas hipóteses de o mesmo ocorrer no Orçamento para 2021. Ora, Marcelo Rebelo de Sousa termina o seu mandato em 9 de Março de 2021, não tendo por isso possibilidade de dissolver o Parlamento a partir de 9 de Outubro do próximo ano. A última coisa que lhe interessa por isso é uma crise política relativa à aprovação do Orçamento para 2021, em relação à qual nada poderia fazer. Seria, por isso, importante uma aprovação do Orçamento de 2020 pela geringonça, deixando o Orçamento limiano para 2021.
O problema é que não é nada provável que os partidos da geringonça façam a vontade ao Presidente. Efectivamente, embora que BE, quer o PCP estejam agora em condições de isoladamente poder juntar os seus votos ao PS para conseguir a aprovação já perceberam que isso é um mau negócio. O PCP perdeu grande parte do seu eleitorado a partir do momento em que se aliou ao PS, pelo que não tem qualquer interesse em continuar a ser sujeito a esse abraço do urso. E ao BE não interessa nada permitir a aprovação das políticas do PS se estas não tiverem igualmente uma marca sua.
Na verdade, os resultados das legislativas ditaram a morte da geringonça, ao reforçar consideravelmente a esquerda e deixando o centro-direita a recolher os cacos das suas derrotas. Em consequência o cimento da união dos partidos da esquerda, que era o receio da possibilidade de a direita regressar ao poder, hoje não existe. O PS está reforçado e não precisa de uma geringonça para se manter no poder, pelo que não é provável que a venha a ter. Por isso, o reforço do PS é ironicamente a sua fraqueza. Guterres também teve quase a maioria dos deputados no parlamento e acabou a negociar orçamentos limianos. Costa começa a legislatura cedo a fazê-lo e embora já tenha declarado, para desgosto dos seus delfins, que se vai recandidatar a um terceiro mandato, não é seguro que o país não venha a cair num pântano, como sucedeu a Guterres. É claro que Costa não é Guterres e nunca vai sair por decisão própria, e muito menos Marcelo tomará qualquer iniciativa de lhe indicar alguma vez o caminho de saída, preocupado em assegurar os votos do PS para a sua própria reeleição. Mas, sem a geringonça, o pântano está definitivamente de regresso à política portuguesa.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção
das regras do acordo ortográfico de 1990