A estratégia de combate à corrupção


Portugal tem um sistema de justiça penal que garante adequadamente os direitos dos cidadãos. O combate à corrupção não pode passar pela supressão desses direitos. 


Esta semana foi anunciado que o Governo iria estabelecer uma estratégia plurianual de combate à corrupção que passaria por três pilares: a separação de megaprocessos, a criação de juízos especializados em corrupção e a colaboração premiada. Para introduzir essa estratégia, o Governo propõe-se criar um grupo de trabalho, constituído por académicos e representantes do Ministério Público, do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho de Prevenção da Corrupção e da Polícia Judiciária, que deverá fazer audições de organizações e apresentar resultados até Abril.

É positivo que seja instituída uma estratégia de combate à corrupção, sabendo-se que se trata de um crime que mina os pilares fundamentais do Estado de direito ao colocar o próprio Estado ao serviço de interesses particulares. No entanto, parecem-nos muito questionáveis os meios que estão a ser equacionados para a obtenção desse objectivo.

Em primeiro lugar, é estranhíssimo que sobre esta estratégia de combate à corrupção não exista uma linha no programa do Governo, que foi recentemente discutido pelo Parlamento. Não é seguramente salutar num Estado de direito democrático que um assunto desta importância seja remetido para grupos de trabalho antes de o Governo apresentar este objectivo ao Parlamento, sabendo-se até que pelo menos terá de lhe pedir autorização para legislar sobre esta matéria.

Em segundo lugar, estranha-se a composição do referido grupo de trabalho, designadamente pelo facto de dele estar ausente a Ordem dos Advogados. Não parece adequado que num grupo de trabalho que vai apresentar propostas num assunto tão sensível esteja ausente a Ordem dos Advogados, que tem precisamente como atribuições “defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça” (art.o 3.o a) do Estatuto da Ordem dos Advogados).

Finalmente, parecem-nos questionáveis os objectivos do grupo de trabalho, colocando mesmo alguns sérios problemas de constitucionalidade.

Relativamente à separação de megaprocessos, nada há na lei actual que a impeça. Com efeito, actualmente, o art.o 30.o do Código do Processo Penal admite expressamente a cessação da conexão sempre que a mesma puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado ou se a conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos. Não se vê, por isso, razão para alterar a lei existente, havendo apenas que a aplicar.

Já relativamente à criação de juízos especializados de combate à corrupção, esta parece-nos contrariar frontalmente o art.o 209.o, n.o 4, da Constituição, que, com a excepção dos tribunais militares, proíbe a existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes. Não nos parece, por isso, que este objectivo esteja em conformidade com a Constituição.

Relativamente à questão da colaboração premiada, não é claro o que o Governo pretende com esta figura, designadamente se pretende adoptar o modelo brasileiro e norte-americano, que admite a negociação de penas com os criminosos que se disponham a colaborar na denúncia de outros criminosos. A ser uma solução desse tipo, passaríamos a assistir à transformação do processo penal numa espécie de teoria dos jogos, com a aplicação do dilema do prisioneiro, em que é proposto a cada arguido que delate o outro para obter isenção ou redução de pena. O problema é que este tipo de sistema não garante a condenação daquele arguido que é mais responsável pelos crimes, acabando por beneficiar aqueles que confessaram primeiro e denunciaram os outros. Em consequência, esta figura não só põe em causa o princípio da legalidade, na medida em que subtrai à condenação penal pessoas que a deveriam sofrer, como também põe em causa o princípio da culpa, já que vai punir os participantes num crime por forma distinta da culpa que cada um deles teve no mesmo, apenas pelo facto de se terem adiantado a denunciar outros.

Portugal tem um sistema de justiça penal que garante adequadamente os direitos dos cidadãos. O combate à corrupção não pode passar pela supressão desses direitos. É, por isso, fundamental estar muito atento ao que este grupo de trabalho vai propor. A Ordem dos Advogados seguramente que irá estar. 

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

A estratégia de combate à corrupção


Portugal tem um sistema de justiça penal que garante adequadamente os direitos dos cidadãos. O combate à corrupção não pode passar pela supressão desses direitos. 


Esta semana foi anunciado que o Governo iria estabelecer uma estratégia plurianual de combate à corrupção que passaria por três pilares: a separação de megaprocessos, a criação de juízos especializados em corrupção e a colaboração premiada. Para introduzir essa estratégia, o Governo propõe-se criar um grupo de trabalho, constituído por académicos e representantes do Ministério Público, do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho de Prevenção da Corrupção e da Polícia Judiciária, que deverá fazer audições de organizações e apresentar resultados até Abril.

É positivo que seja instituída uma estratégia de combate à corrupção, sabendo-se que se trata de um crime que mina os pilares fundamentais do Estado de direito ao colocar o próprio Estado ao serviço de interesses particulares. No entanto, parecem-nos muito questionáveis os meios que estão a ser equacionados para a obtenção desse objectivo.

Em primeiro lugar, é estranhíssimo que sobre esta estratégia de combate à corrupção não exista uma linha no programa do Governo, que foi recentemente discutido pelo Parlamento. Não é seguramente salutar num Estado de direito democrático que um assunto desta importância seja remetido para grupos de trabalho antes de o Governo apresentar este objectivo ao Parlamento, sabendo-se até que pelo menos terá de lhe pedir autorização para legislar sobre esta matéria.

Em segundo lugar, estranha-se a composição do referido grupo de trabalho, designadamente pelo facto de dele estar ausente a Ordem dos Advogados. Não parece adequado que num grupo de trabalho que vai apresentar propostas num assunto tão sensível esteja ausente a Ordem dos Advogados, que tem precisamente como atribuições “defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça” (art.o 3.o a) do Estatuto da Ordem dos Advogados).

Finalmente, parecem-nos questionáveis os objectivos do grupo de trabalho, colocando mesmo alguns sérios problemas de constitucionalidade.

Relativamente à separação de megaprocessos, nada há na lei actual que a impeça. Com efeito, actualmente, o art.o 30.o do Código do Processo Penal admite expressamente a cessação da conexão sempre que a mesma puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado ou se a conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos. Não se vê, por isso, razão para alterar a lei existente, havendo apenas que a aplicar.

Já relativamente à criação de juízos especializados de combate à corrupção, esta parece-nos contrariar frontalmente o art.o 209.o, n.o 4, da Constituição, que, com a excepção dos tribunais militares, proíbe a existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes. Não nos parece, por isso, que este objectivo esteja em conformidade com a Constituição.

Relativamente à questão da colaboração premiada, não é claro o que o Governo pretende com esta figura, designadamente se pretende adoptar o modelo brasileiro e norte-americano, que admite a negociação de penas com os criminosos que se disponham a colaborar na denúncia de outros criminosos. A ser uma solução desse tipo, passaríamos a assistir à transformação do processo penal numa espécie de teoria dos jogos, com a aplicação do dilema do prisioneiro, em que é proposto a cada arguido que delate o outro para obter isenção ou redução de pena. O problema é que este tipo de sistema não garante a condenação daquele arguido que é mais responsável pelos crimes, acabando por beneficiar aqueles que confessaram primeiro e denunciaram os outros. Em consequência, esta figura não só põe em causa o princípio da legalidade, na medida em que subtrai à condenação penal pessoas que a deveriam sofrer, como também põe em causa o princípio da culpa, já que vai punir os participantes num crime por forma distinta da culpa que cada um deles teve no mesmo, apenas pelo facto de se terem adiantado a denunciar outros.

Portugal tem um sistema de justiça penal que garante adequadamente os direitos dos cidadãos. O combate à corrupção não pode passar pela supressão desses direitos. É, por isso, fundamental estar muito atento ao que este grupo de trabalho vai propor. A Ordem dos Advogados seguramente que irá estar. 

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990