O jeito que tinha dado um António Costa em Londres


Os eleitores britânicos tiveram a perceção da insustentabilidade da proposta de Corbyn. O Partido Trabalhista deu todo o espaço à cegueira ideológica, ao improviso e à ausência de clareza. E pagou caro por isso.


Jeremy Corbyn é uma expressão de uma deriva esquerdista que alguns apologizam para o Partido Socialista em Portugal. Perdido na gestão do quotidiano marcado pelo Brexit, sem enunciar uma posição clara sobre a questão, o líder trabalhista britânico quis acantonar o partido à esquerda da esquerda, com um programa eleitoral sustentado num colossal investimento público e profusas nacionalizações, arrecadando volumosas receitas à conta da tributação de tudo o que pudesse mexer com êxito na economia e na sociedade. O resultado está à vista. Um dos maiores desastres eleitorais de sempre para os trabalhistas, uma robusta vitória para os conservadores, com maioria absoluta e com redobrada força para prosseguir com a saída da União Europeia. Os eleitores tiveram a perceção e a noção da realidade da insustentabilidade da proposta política e da ausência de credibilidade do proponente Corbyn, que alguns, ainda em transe ideológico sem adesão com a realidade, parecem desculpar, depois da hecatombe. No país em que a interação entre os partidos e os eleitores é mais sustentada, estudada e monitorizada, que, no caso do Partido Trabalhista, pelo menos na era de Blair, era de um profissionalismo impressionante, terá sido dado todo o espaço à cegueira ideológica, ao improviso e à ausência de clareza no caminho proposto. Estava em causa um caminho para fazer diferente – os trabalhistas propuseram um caminho similar ao proposto noutras grandes derrotas eleitorais. A deriva à esquerda da esquerda, também sustentada por cá, evidenciou a sua relevância social e eleitoral, razão para os adeptos lusos moderarem o discurso público, modelarem o exercício do poder e exercitarem em privado a visão radical e as ânsias de convergência nos valores e nos métodos com o Bloco de Esquerda e com o PCP.

Sem as derivas de verborreia que por vezes se manifestam no burgo, tinha dado jeito aos trabalhistas terem um António Costa em Londres. Alguém que recentrasse a proposta, transmitisse uma perceção positiva, ainda que com fragilidades no confronto com a realidade, normalizasse as divergências em torno do objetivo de conquista e manutenção do poder, mantendo um clima de aceitação da narrativa e dos equilíbrios políticos, mesmo que incompatíveis. Alguém que fosse diferente sem o ser, que fizesse percecionar propostas para todos os gostos, sem assegurar a execução adequada, e que ganhasse mesmo quando não se ganha. Os trabalhistas britânicos precisavam de um utilitário focado nos fins, sem olhar aos meios, mas apresentaram um zeloso conservador do arquivo de modelos de governação ideológicos, sem sintonia com a atualidade. O anacronismo saiu caro. O Brexit vai sair ainda mais caro.

O sistema eleitoral é bem diferente, o regime é monárquico, embora por cá proliferem figuras decorativas com tendências para o disparate de sinal republicano e democrático. A história do Brexit é a narrativa de um rastilho ateado para enfrentar o continente, em que ninguém tratou de agir perante o pavio cada vez mais próximo do rebentamento. O resultado final está longe de ser percetível, com impactos globais na construção europeia, na interação luso-britânica e nas ameaças que impendem sobre a comunidade portuguesa no Reino Unido.

Como europeus comprometidos com a construção de um espaço comum de valores e princípios, que acolhe e tolera a diversidade das identidades de cada nação, ficamos mais pobres. O drama é que, cá como no espaço europeu, proliferam as incapacidades para sintonizar as respostas com as necessidades e os riscos das pessoas e dos territórios, de forma equilibrada, sustentável e com respeito pela diversidade. O abuso de posição negocial de alguns para projetarem no Orçamento do Estado algumas intolerâncias com a diversidade é uma preocupação, porque foi justamente essa deriva de insensibilidade e de desrespeito pelas esferas de liberdade e de identidade que estiveram na origem do estado da arte no Reino Unido.

Com tanta experiência no ativo, é estranho que se multipliquem os disparates, a incapacidade de ler as dinâmicas das sociedades e das nações e a inconsistência das propostas políticas para responderem além da emergência do quotidiano e da sobrevivência política. Reiteram o acumular de passivos de respostas sustentadas para as questões estruturais e as novas realidades; depois, a contenção das dinâmicas negativas torna-se um exercício de difícil resultado positivo individual e comunitário. Tudo isto num quadro de grande instabilidade global, de emergência de novos poderes globais e de tensões crescentes perturbadoras da normalidade.

NOTAS FINAIS

PONTUALIDADE BRITÂNICA. Num Estado de Direito, em teoria existe a presunção de inocência. Em Portugal, arguido significa condenado na praça pública. Na realidade, é ténue a presunção de inocência, mas é muito forte a predisposição judicial e jornalística para a presunção de acusação com os titulares de cargos públicos e vocação dos média para um corporativo exercício de presunção de idoneidade quando toca a algum dos seus membros. Na dúvida, é idóneo. Dúvidas são só para os outros, também em coro. Nunca falham.

VOLANTE AO CONTRÁRIO. É normal existirem regras, que sejam conhecidas e que a sua observância ou inobservância decorra de forma corrente, em função das dinâmicas da sociedade. Em Portugal, funciona-se aos repelões, sem estabilidade ou previsibilidade e com fúrias de obtenção de receita. As cativações, ao exaurirem os serviços públicos, potenciam esses sobressaltos no fisco, na segurança social e na fiscalização rodoviária.

OOOORDEEER! OOOORDEEER! A maioria dos “ismos” negativos vivem de espaços e de oportunidades deixados por quem tinha responsabilidades de assegurar o cumprimento das expetativas gerais de acordo com impulsos inteligíveis, interiorizáveis e eficazes no cumprimento de necessidades individuais ou comunitárias. Há quem teime em não compreender essa realidade e insista em gerar novas oportunidades para os “ismos” negativos, sem solidez estrutural, mas com acutilância de circunstância para continuar a ter motivos para se afirmar. Sim, é mesmo uma vergonha.

UNIDOS. Da minha experiência política de vidas passadas, há mínimos de coesão nos projetos políticos que não devem ser ultrapassados. Assistir à negociação do Orçamento do Estado entre membros do Governo nos jornais ou à acareação de putativos sucessores de uma liderança na praça pública, num quadro em que o primeiro-ministro projeta a sua ambição de permanência no poder para um horizonte até 2028, é sintomático de um deslaçar político inusitado.

Escreve à segunda-feira