Não é a Joacine…


Em democracia representativa, os nossos eleitos são um espelho da nossa sociedade. Às oito da noite, em qualquer televisão, está o nosso reflexo e da zombaria a que estamos votados.


Joacine não é política. É uma ativista. Daí muitos não compreenderem a sua prestação enquanto deputada, na casa da democracia, onde a conduta deve ser apropriada às funções e ao respeito institucional que o Parlamento nos merece.

Não é sobre a Joacine Katar Moreira que quero escrever, mas sim sobre escolhas como esta para encabeçarem listas partidárias a eleições legislativas em Portugal.

As razões desta seleção foram óbvias desde o primeiro momento: mulher, negra, intelectual, feminista, ativista e sem papas na língua, a não ser quando é atraiçoada pela pressão ou ansiedade. Após esta primeira impressão, a curiosidade em torno desta personagem foi crescendo e despertou o interesse de muitos, que passaram a não ser indiferentes a esta candidata.

Este interesse traduziu-se em 57 192 votos, correspondendo a 1,09% da votação e a um mandato parlamentar. Quatro anos antes, o Livre, em coligação com o Tempo de Avançar, tinha obtido 39 340 votos, o equivalente a 0,73% dos resultados.

Joacine foi vencedora num terreno que estava minado por tantos outros candidatos que tinham uma mensagem semelhante à sua, quer fosse no tom, na postura, nas reivindicações sociais e até mesmo na extravagância.

O debate televisivo em que estiveram presentes mais de uma dezena de candidatos às legislativas, entre os quais Joacine Katar, foi a constatação do que estaria para vir. Se dúvidas houvesse, os mais atentos tiveram aí a derradeira oportunidade para compreender a razoabilidade, ou a ausência dela, de determinadas posturas e discursos.

Apesar de ser uma constante o facto de os partidos sem assento parlamentar terem que se destacar dos seus homólogos para acederem a um lugar na Assembleia da República e estarmos habituados à propagação de ideias intemperadas e espalhafatosas, numa tentativa de se fazerem ouvir, não estamos preparados para ver um espetáculo de circo em São Bento.

Acusamos os parlamentares de pouco ou nada dignificarem aquela casa e a nossa democracia, apupando os seus comportamentos e criticando a sua conduta e ética no desempenho das suas funções. Mais, exigimos mais dos deputados do que de qualquer outro profissional no exercício da sua atividade e temo-nos demonstrado mais intolerantes com as suas falhas do que com as de outros. Como se antes de se sentarem no hemiciclo passassem por uma câmara de esterilização que lhes retirasse todas as impurezas inerentes à condição humana e se tornassem seres perfeitos e purificados a partir daquele momento. Se essa câmara de esterilização existir, então, por favor, vamos incluir no próximo Orçamento do Estado uma verba para a aquisição de várias câmaras para serem colocadas às portas de hospitais, de tribunais, de jornais, de câmaras municipais, de serviços da função pública, etc… Comece-se pelos serviços que têm cartões para atestar presenças ou faltas.

Sim, está tudo errado. Esta conduta está errada, seja onde for. Mas mais errada está a nossa leviandade em não querer assumir que somos os maiores responsáveis, enquanto eleitores, pelo que se passa naquele Parlamento. Em democracia representativa, os nossos eleitos são um espelho da nossa sociedade. Às oito da noite, em qualquer televisão, está o nosso reflexo e da zombaria a que estamos votados, caso continuemos a ser inconsequentes nas escolhas que fazemos em nome da irreverência e de discursos a favor das minorias, mas com um subtexto de ódio e de desrespeito por todo o resto dos portugueses. Este mesmo resto que respeita e faz por respeitar as exceções do dia-a-dia. Mas que não são a regra, por mais espetáculos que deem.

Há seis meses atrás, ai de quem pudesse sequer pensar que Joacine e outros não eram adequados para o mandato a que se propuseram. Seria logo vaiado e criticado pelo seu elitismo, pela falta de empatia demonstrada pela disfemia, pela sua incompreensão de um ideário vanguardista e abrangente dos direitos individuais. Hoje, todos se alinharam para levantar o dedo na mesma direção, em vez de o apontarem a si próprios e assumirem a sua corresponsabilidade neste circo mediático e pouco dignificante para a nossa democracia e vida política.

 

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