No início de O Irlandês, o mais recente filme de Martin Scorsese, que chega hoje à Netflix, somos guiados através de um lar para idosos por uma steadycam, um movimento que reconhecemos de icónicos filmes do realizador. Esteve em Tudo Bons Rapazes, esteve no Lobo de Wall Street. Os velhos truques de uma raposa velha guiam-nos até um velho conhecido: Robert De Niro. É aqui, no entanto, que somos apresentados a algo novo – para não falar da própria distribuição inédita do filme, que apenas vai estar num número selecionado de cinemas no mundo. Em Portugal vai estar disponível exclusivamente na plataforma de streaming.
Voltamos à trama para encontramos o ator velho e doente, numa vulnerabilidade inédita. Já tínhamos visto um De Niro fragilizado, por exemplo em O Touro Enraivecido, história de um lutador de boxe, Jake La Motta, caído em desgraça. Há uma cena em que o lutador entra em colapso depois de ser preso e, na cela da prisão, dá cabeçadas e murros na parede enquanto chora, grita e se questiona como chegou a este ponto tão baixo na sua vida.
A fragilidade que vemos agora neste ator, uma das presenças mais importantes ao longo da filmografia de Scorsese, é diferente. Ver Robert De Niro neste estado débil e a contemplar a sua morte é uma imagem forte que deixa uma mensagem clara. Este não é mais um filme sobre gangsters.
Em Tudo Bons Rapazes (filme que serve como contrapartida para O Irlandês) somos convidados a acompanhar Henry Hill (interpretado por Ray Liotta) e a visitar com ele o clube Copacabana, onde assistimos em primeira mão ao glamour e aos excessos da vida de um gangster.
Uma cena recorrente em O Irlandês leva-nos até uma viagem de carro. Frank Sheeran (De Niro) guia o seu mentor, o mafioso Russel Bufalino – interpretado por Joe Pesci, outra presença comum nos filmes de Scorsese, que interrompeu o seu retiro do cinema de quase uma década para fazer este papel –, numa longa viagem, pautada por diversas paragens para as suas mulheres poderem fumar.
Nesta viagem, retomada ao longo das três horas e meia da película, percebemos a dinâmica entre estes dois e voltamos aos velhos truques de filmes de gangsters. Os personagens visitam diferentes estabelecimentos para coletarem dinheiro de pessoas que estão a dever a Bufalino. Já vimos isto antes, mas é no final desta viagem, quando Bufalino diz a Sheeran que deve viajar até Detroit para “pintar casas” (código da máfia para matar pessoas), que começamos a ver a sua identidade diferente.
Já tínhamos posto os olhos em Sheeran a “pintar casas” sem grandes remorsos mas, agora, o personagem é obrigado a abandonar o seu orgulho e crenças para executar (sem entrar em grandes detalhes) um homem que respeitava e considerava um dos seus amigos mais chegados.
Este é o ponto sem regresso do filme e que marca o início da sua espiral decadente. Sheeran, Bufalino e outros associados são presos (por crimes que, ironicamente, não envolvem diretamente esta morte), envelhecem e adoecem progressivamente nas suas celas. Bufalino, já de cadeira de rodas e com sintomas de Parkinson, não resiste e acaba por perecer ainda na prisão.
É na vida pós-encarceramento que percebemos os efeitos que a violência deixou na vida de Sheeran. A sua filha Peggy (interpretada por Anna Paquin) não perdoa o pai por esta execução e recusa falar com ele – é aí que as outras filhas acabam por abandoná-lo num lar de idosos.
Despedimo-nos deste O Irlandês por uma porta entreaberta para um solitário De Niro, vergado pelo peso dos seus pecados. De que serviu, afinal, toda a violência e morte se, no final, Sheeran acaba a sua vida com um elegante caixão verde para ser enterrado?
Um gangster virado do avesso A ação desenfreada de filmes como Casino ou Tudo Bons Rapazes deu lugar a um pacing mais lento: afinal, tanto o realizador como os três protagonistas têm mais de 75 anos (apesar da energia desenfreada de Al Pacino, que interpreta o papel do sindicalista Jimmy Hoffa). Ação, tensão e ritmo continuam interessantes e invejáveis para muitos outros realizadores, mas é um filme mais meditativo e melancólico.
Onde está o Scorsese que usou a Jumpin Jack Flash dos Rolling Stones em Mean Streets para introduzir Johnny Boy (também interpretado por De Niro)? Ele continua aqui, e com muita vida. Mas a idade oferece uma perspetiva diferente. Em vez de Stones, na reta final somos perseguidos por uma banda sonora assombrada e sorumbática, com um sinistro contrabaixo a captar o declínio fatal dos criminosos.
À semelhança do que Clint Eastwood fez em Imperdoável (1992), onde o velho mestre do western regressou a este género para o desconstruir num conto sobre a mortalidade, Scorsese fez o mesmo em O Irlandês.
A sua carreira e filmografia é revisitada através da interpretação de Robert De Niro que, graças aos avanços tecnológicos de CGI (computer generated images), tornou possível apresentar o ator mais novo e desempenhar o mesmo papel ao longo de diferentes décadas. Foram várias as notícias que anunciavam o exorbitante valor financeiro que esta tecnologia implicou; no entanto, ao ver o trabalho final, podemos afirmar que faz todo o sentido na existência deste meta casting. Quem mais poderia ser o guia desta viagem pela filmografia do realizador se não o ator que tantas vezes deu voz a alguns dos mais importantes filmes da sua carreira?
Ao longo das últimas décadas, Martin retratou no grande ecrã a violência como mais ninguém, mas desta vez coloca os seus peões mais icónicos numa fragilidade nunca antes vista para mostrar as consequências que a vida de gangster acarreta e como todo o glamour desse estilo de vida é efémero.
O Irlandês é uma viagem sobre a mortalidade e uma meditação sobre os pecados e arrependimentos do nosso passado, mas é também experiência arrebatadora. Não vamos querer vê-lo pela frincha de uma porta entreaberta. Queremos apreciá-lo através de uma porta completamente escancarada.