Miguel Guimarães. “Não podemos deixar que  a tecnologia ocupe o espaço todo entre as pessoas”

Miguel Guimarães. “Não podemos deixar que a tecnologia ocupe o espaço todo entre as pessoas”


“Um especialista em início de carreira leva para casa 1800 euros, quando tem um período de formação de 13 anos e uma enorme responsabilidade. O único privilégio, hoje em dia, para a maioria dos médicos é cuidar das pessoas”, diz o bastonário dos Médicos


Em que ponto está a candidatura da relação médico-doente à UNESCO?

Está no início. É um processo que poderá levar alguns anos, mas já iniciámos contactos. Não é uma candidatura fácil, porque a relação médico-doente não é algo típico de um país. Temos médicos de várias organizações internacionais e a própria Associação Médica Mundial, que vai reunir-se em Portugal, a unir-se em torno desse objetivo. Espanha e Portugal têm estado a dar passos para fundamentar a candidatura e este livro surge nesse sentido, com testemunhos de médicos, doentes, pessoas ligadas às artes e filosofias e que, no fundo, falam dos princípios humanistas que devem presidir à relação entre médicos e doentes, da sua evolução ao longo do tempo e das limitações atuais.

Um alerta além da medicina?

Sim. Hoje falamos das dificuldades criadas pelos computadores, pelos ecrãs, que são um problema na interação entre médicos e doentes, mas penso que é uma ameaça maior. Vamos jantar e vemos as famílias agarradas aos telefones, às diferentes plataformas, a mandar mensagens umas para as outras à mesma mesa, em vez de falarem. Alertando para a relação médico-doente, queremos alertar para uma perda de empatia a um nível mais global. E avançar para uma candidatura seria também lançar um debate sobre isto, não deixar que a tecnologia ocupe o espaço todo entre as pessoas.

Tem chamado a atenção para os tempos de consulta reduzidos. Que relatos chegam à ordem?

Hoje temos já tempos de padrão definidos por consulta e exames e há alguns hospitais a tentar cumprir, mas continua a haver consultas que demoram cinco, sete minutos, o que é insuficiente até para poder explicar ao doente o que tem de ser feito e evitar situações em que possa haver uma prescrição desnecessária de exames, o que acaba por ser um desperdício de recursos. Nesse sentido temos tido outras iniciativas como o programa Choosing Wisely Portugal – Escolhas criteriosas em saúde, em que fomos dos primeiros países a avançar com normas que permitem aos médicos ter segurança para, num conjunto de situações, dizerem aos doentes que perante determinados sintomas, um exame pode não ser necessário. E isto é crucial até na sensibilização da população: permitiria, por exemplo, reduzir o fluxo nas urgências. Já temos mais de cem recomendações publicadas. Outra iniciativa nesta área é o acesso aos principais sites de informação médica que passam a estar disponíveis em todas as unidades, que tem tido algum atraso e desinteresse do ministério, mas é essencial para basear as decisões em evidência científica em consulta, aumentar a literacia em saúde da população e melhorar os resultados. 

Casos como o do obstetra de Setúbal e demora na atuação disciplinar não podem também diminuir a confiança nos médicos? 

Ao princípio pode ter abalado, foram tomadas medidas, é preciso aprofundar essa confiança. Os doentes têm uma relação de grande proximidade com os médicos, contam-lhes coisas que não contam a ninguém, mas por vezes também de grande distanciamento, por exemplo na imagem de que os médicos são privilegiados, que vem do antigamente e hoje não corresponde à realidade. Hoje, os médicos portugueses são dos que ganham menos na Europa ocidental. Um especialista em início de carreira leva para casa 1800 euros, quando tem um período de formação de 13 anos e uma enorme responsabilidade. O único privilégio, hoje em dia, para a maioria dos médicos é cuidar das pessoas.