19 de novembro  de 1956. Do alto do penedo mandaram lixar Napoleão

19 de novembro de 1956. Do alto do penedo mandaram lixar Napoleão


Era altura para recordar que, por muito pouco, Itália e São Marino não entraram numa guerra incompreensível e absurda. E que o orgulho dos são-marinenses ia para além da vontade de reis e imperadores: tinham o sentido da república.


São Marino: eis um país fascinante. Espetado como um pionés no meio da península da bota como os velhos reinos ou cidades-estados da Renascença. Com uma diferença tremenda: é uma república. Muito provavelmente, até que alguém prove o contrário, a república mais antiga do mundo.

Visto de longe, é apenas um penedo com um castelo a servir de chapéu. Sem mais nem porquê, em novembro de 1956, os jornais portugueses resolveram prestar atenção a São Marino. Deram-lhe espaço, compraram material às agências internacionais. Publicaram-se textos tão inflamados que meteram pelo meio, imaginem!, as coxas da Sophia Loren. As coxas? E eu que pensava que Sophia tinha atrativos bem mais fortes. Pouco importa. Cada um trabalha com a gasolina que o cérebro lhe fornece. “São Marino, latitude 43o 56’ 04’’; longitude 12o 26’ 56’’, entre as mui nobres províncias italianas de Pesaro e Forli”. Está apresentado o minúsculo país. Ou talvez não.

Vamos aos factos que traziam de volta São Marino à superfície da sua vida sonolenta. Em 1951, já a ii Guerra Mundial ia entrando nos labirintos do olvido, Itália e São Marino estiveram à beira de uma guerra tão estranha como incompreensível. Motivo: um bloqueio. A grande Itália fechara as linhas de caminho-de-ferro para o pequenino monte Titano, com os seus 750 metros de altitude. Ou, neste caso, será altura? Enfim, os são-marinenses enfuriaram-se. Gostam de viver tranquilos lá no seu pedacinho de terra, tão seu, e agora traziam-lhes chatices até à porta. Não! Não estavam para aí virados.

Para chegar a São Marino de comboio é preciso parar em Falconaro, a última estação italiana. Depois, mudamos de país. Os vagões, geralmente, vão cheios. O pequenino país atrai gente. Atrai muita gente. Malta de todas as espécies em busca de um pedacinho de Disneylândia, mas autêntica. Só que o castelo não tem príncipes nem princesas, nem marqueses nem duques. A atitude diferencia-os profundamente da Itália que os rodeia: isto é uma República. Com letra maiúscula.

 

País da bondade

“Cheguei a um país que tem 1650 anos de existência!”, escrevia um correspondente internacional, publicado em diversos jornais de todo o mundo. “Só isso faz com que esteja num lugar absolutamente único!” Tinha razão. “Nós somos o país da bondade!”, disse-lhe o primeiro local com quem se cruzou. “Não somos nem italianos nem turistas. Somos de São Marino. E com um orgulho muito profundo!” O nosso enviado especial estava pasmado. Entrara no país como se tivesse entrado numa das muitas cidades italianas pelas quais passou durante o caminho e encontrava um espírito rebelde. “Temi a revolta! Ver, ondulado e bipartido, horizontalmente, com o escudo das três torres dos seus baluartes altaneiros, encimados pela pena da águia da liberdade secular, o estandarte da pequena república montanhesa tocou-me no fundo da alma”.

Diz-se que Napoleão Bonaparte, sentindo que não devia gastar material militar em São Marino, tentou comprar o local à custa de pechisbeque. Enviou, por isso, um representante, um sábio de nome Gaspar Monge, para agraciar os são-marinenses. Foi recebido pelo capitão-regente, Antonio Onofrio, com toda a educação e requinte. Mas ouviu a resposta que nunca esperou: “Somos um país pequeno, mas digno. Queremos continuar assim. Não nos ofereçam riquezas porque só a pobreza poderá conservar-nos, pelos séculos que virão, a nossa independência”.

São Marino tinha um orgulho maior do que Napoleão, conquistador do Egito. Não se vendeu; não se rendeu. Napoleão desistiu. O país da bondade continuou dono de si próprio.

Catorze mil pessoas habitavam São Marino em 1956. “Esta é boa!”, escrevia o enviado especial. “Nem passaporte nos pedem para entrar em São Marino. É como se abrissem as portas do céu sem um São Pedro de chaves em punho. À minha volta tenho velhos camponeses, de rostos sorridentes, enrugados como a face da terra. Ali, no cimo do bélico penedo, eram como invencíveis titãs. Metros adiante, uma larga tira de pano sobre a estrada dá as boas-vindas aos forasteiros: Benvenuti nel’antica terra della libertà. Os operários saudavam-nos e as crianças corriam em direcção ao veículo lançando-nos flores. Uma junta de bois brancos, enormes como búfalos, lavrava pachorrentamente os socalcos e havia delicados vergéis entre jovens ciprestes de imóvel sombra verde. Pomos rúbeos entregues à gula dos pardais que me pareceram mais ladinos naquela pequena e liberal república”.

São Marino centro de romantismo? De palavras suaves e penetrantes? E porque não? No alto da montanha íngreme e rochosa, o castelo exibe a independência e a vontade de ser livre. A partir daí, a imaginação de cada um toma conta das ruas estreitas e de todas as construções que fazem dessa cidade e país ao mesmo tempo um lugar ao qual precisamos de ir um dia na vida, nem que seja a correr, para sentir o espírito de uma paz que deixou há muito de existir na Europa de todos os excessos.

Dizer não à fortuna de Napoleão é de gente com caráter. Como se lhe dissessem: vem e conquista-nos, se és capaz. Pelos vistos, o grande corso não foi. Não esteve para correr riscos. Havia orgulhos maiores do que o dele.