“Não sou cozinheiro. Sou contador de histórias e eram histórias que queria contar”. E foram histórias que Nelson Marques contou no seu livro Chefs Sem Reservas, que chega hoje, 13 de novembro, às livrarias. Mais propriamente a história de dez chefes mais do que conhecidos: Anthony Bourdain, Alain Ducasse, Massimo Bottura, Alex Atala, José Avillez, Ljubomir Stanisic, Andoni Aduriz, Hans Neuner, Nuno Mendes e Vítor Sobral. Logo no início, mais um peso-pesado: o livro é prefaciado por Ferran Adrià.
“Habitualmente, nem escrevo sobre esta área”, começa por contar o jornalista ao i. “Mas, hoje em dia, os chefes são muito populares, há quem diga que são as novas estrelas rock. A dada altura apercebi-me de que já tinha entrevistado alguns dos mais mediáticos, tanto no panorama nacional como internacional, e achei que poderia ser interessante aproveitar estas conversas muito longas para reunir estas confissões e lições destes cozinheiros”.
Apresentações feitas, o autor ressalva que este não é o típico livro de cozinha. “Muita gente aconselhou-me a pôr uma receita por chefe. A primeira frase do livro é ‘este não é um livro de receitas’: não quero que o seja”, diz.
Uma mensagem que pretende que fique clara logo na capa do livro. “Testámos uma capa com pratos e a nossa discussão era se isso não passava a ideia que era mais um livro de comida. Existia esse receio e quero que as pessoas percebam que eu optei por um prato partido precisamente para desconstruir esta ideia de alta-cozinha e para sublinhar a ideia dos erros que também aconteceram nos percursos dos chefes”.
Sem uma linha cronológica ou qualquer tipo de hierarquia, a ordem por que se apresentam as histórias no livro segue um fio condutor que pretende descrever os percursos com altos e baixos. E assim, tal como com a sobremesa “Oops! Deixei cair a tarte de limão”, prato servido no restaurante de Massimo Bottura, inspirado numa tarte de limão que caiu no chão, desconstruir as personalidades deste chefes de cozinha.
À mesa com os chefes “As histórias têm um fio condutor e eu tento que de umas se passe para as outras. A única decisão que tive de tomar foi por quem começar. Optei pelo [Anthony] Bourdain”, nota Nelson Marques.
Apesar de esta ser uma entrevista mais curta, feita quando o chefe americano, que morreu no ano passado, esteve em Lisboa, em 2011, a gravar o programa Não Aceitamos Reservas, dada a sua importância para o mundo da cozinha e a sua carismática personalidade, Bourdain não só mereceu este destaque como foi o único agradecimento do livro.
“[O nome do livro] é muito próximo do nome do programa do Bourdain, mas a dada altura pensei: ‘Vamos assumir isto’. Um tipo como o Bourdain influenciou muitas pessoas pela forma desassombrada e provocadora como contava histórias. Há muitos a percorrer o mundo e a contar histórias mas, perdoem-me, ninguém o faz como ele”, explica o autor, enquanto recorda a última pergunta que fez a Bourdain, há já oito anos. “A última pergunta que lhe faço é como ele gostava de ser recordado. Ele diz que gostava de ser lembrado como ‘alguém que, afinal, não era assim um sacana tão grande’. Eu acho que ele não era assim tão sacana, citando o Ljubomir, ele era ‘um tipo do caraças’. É por isso que está aqui, é um tipo que nos faz falta”.
Outra personagem essencial no livro é Massimo Bottura, cujo restaurante Osteria Francescana (que em 2018 foi considerado pela segunda vez o melhor restaurante do mundo pela revista britânica Restaurant, uma das mais importantes do mundo da alta-cozinha) é um excelente exemplo de persistência.
“Quando [o Bottura] abriu o Osteria Francescana, em Modena, uma terra em Itália onde a tradição era tudo, ele começou a tentar reinventar a cozinha italiana. Muitos acharam que ele era louco e ninguém ia ao seu restaurante. Ele quis fechar o negócio e mudar-se para Londres, foi a mulher que insistiu para continuar a acreditar”, recorda. “Um dia, um crítico encontra um engarrafamento na autoestrada, fez um desvio, foi a Modena e foi ao restaurante dele sem o conhecer – e o Bottura sem saber que ele era crítico, provavelmente era até o único cliente daquela noite. O crítico chegou ao final da refeição e disse ao chefe para ele ler na revista L’Espresso a crítica que ia escrever ao seu restaurante. Lá, questionava: ‘Como é possível termos ignorado este restaurante durante tanto tempo?’ E [escreveu] que sentia vergonha por o restaurante estar a ser ignorado. No final desse ano, Bottura recebeu a sua primeira estrela Michelin e a carreira dele chegou onde chegou hoje”.
As histórias inacreditáveis não ficam por aqui. No livro, Nelson Marques recordada a “situação-limite” de Alain Ducasse, o “imperador da cozinha francesa”. “O Ducasse tinha 27 anos quando se tornou o chefe mais novo a chegar às duas estrelas Michelin. Era uma estrela da gastronomia em França. Nesse mesmo ano sobreviveu a um acidente de avião, foi o único sobrevivente”, lembra. “O livro está salpicado deste tipo de histórias e é da soma delas que conseguimos mostrar toda as dimensões destas personagens. Citando o Massimo Bottura: ‘Hoje somos mais do que a soma das nossas receitas’”.
“Agora é cool ser chefe” Alguém que mereceu bastante destaque ao longo da conversa foi José Avillez, que este ano se tornou o primeiro chefe português a figurar no top-50 dos melhores restaurantes do mundo (o Belcanto surge na posição n.o 42) e surpreendeu pela positiva o escritor. “Temos todos a ideia de que conhecemos o José Avillez. Ele está em todo o lado, é difícil contestar que é o cozinheiro português com maior sucesso. A par do Ljubomir, são os dois chefes mais mediáticos em Portugal”.
No livro, a história do chefe português é um dos momentos mais duros. “A dada altura, a nossa conversa parecia psicanálise”, revelou. “Explorámos vários terrenos, ele perdeu o pai muito cedo e conta como se tornou o homem da casa. É uma parte dura da conversa e de ler. Ele diz que tem muitas memórias boas da infância, mas são todas ofuscadas pelos momentos de perda”. Uma partilha que se tornou especial para o jornalista. “Acabou por ser muito surpreendente ter ido muito mais além do que eu esperava, era isso que eu queria: humanizar estas pessoas. Ele conseguiu isso”.
Quanto ao estado atual da alta-cozinha em Portugal, Nelson acredita que se está a viver um momento “santo” na gastronomia portuguesa, com jovens chefes talentosos e decididos a quebrar barreiras, usando, mais uma vez, o exemplo de José Avillez para ilustrar esta situação. “Quando [o Avillez] disse em casa que queria ser cozinheiro, a empregada dele chorou. O ‘menino Zé ia fazer algo que era para as ‘pessoas como ela’. Na sua ótica, uma pessoa como o José iria para a arquitetura, mas dentro dele havia um cozinheiro. Não era comum seguir este caminho, não era o caminho óbvio, mas já não é assim. Hoje há uma geração para a qual é cool ser chefe”.