Mestre, venerando mestre!
Os seus alunos, os seus colegas, quiseram prestar-lhe uma homenagem. Sentida. Íntima.
Nada de festarolas com o seu quê de pacóvio, muito próprias do Portugalzinho que gosta de ser sabujo. Uma coisa sossegada, respeitosa, sim, mas envolta em carinho, em amizade.
Por isso solicitaram-lhe uma visita. Representantes do conselho regional de Lisboa da Ordem dos Médicos. O professor Egas Moniz disse que sim senhor, que seriam bem idos. Combinou-se tudo. Uma ou duas fotografias para serem entregues à imprensa, de forma a perpetuar o ato, e nada mais.
Recato, sobretudo recato.
O professor Egas Moniz era de famílias nobres. E não se chamava Egas Moniz, vejam lá. Chamava-se António Caetano de Abreu Freire de Resende, filho de aristocratas rurais, Fernando de Pina de Resende de Abreu Freire, seu pai cheio de “des”, homem de Idanha-a-Nova, e Maria do Rosário de Oliveira de Almeida e Sousa, idem, senhora de Anadia.
Dizem que “de” é sinal de nobreza.
Olhem que não, olhem que não!
É apenas uma parcela que separa dois apelidos, tal e qual o “e”, tal e qual o “do”.
António teve um padrinho padre e muito convencido das linhagens. Caetano de Pina Resende Abreu e Sá e Freire, tio paterno, que lhe deu a bênção ao nascer, no dia 29 de novembro de 1874, em Vilarinho do Bairro, zona de Estarreja, asseverava a quem o queria ouvir que todos eles eram descendentes do aio de D. Afonso Henriques, o célebre Egas Moniz, que andou de baraço ao pescoço. O rapaz cresceu influenciado pelo tio, que era íntimo de Nosso Senhor, e deixou-se levar. Passou a denominar-se Egas Moniz, não muito cientificamente, é bem certo, mas nem tudo na sua vida poderia ser ciência. Bastava aquele momento em que descobriu a arteriografia cerebral, juntando-lhe em seguida a intervenção cirúrgica, a leucotomia pré-frontal, para o elevar ao patamar dos supremos sapientes. Valeu-lhe o Nobel da Medicina nesse ano que aqui nos traz de 1949, depois de já ter sido proposto quatro vezes, em 1928, 1933, 1937 e 1944. E valeu-lhe, mais tarde, uma guerra sem quartel de muitos médicos que consideraram a intervenção tão capaz de provocar danos cerebrais definitivos que acabou por ser proibida em 1960 e se ergueram vozes exigindo que o Nobel lhe fosse retirado.
Nessa altura, já Egas Moniz estava morto há cinco anos, pelo que a controvérsia lhe passou ao lado do eterno descanso. O Nobel ficou.
Oito tiros E era exatamente por causa do Nobel que, no dia 12 de novembro de 1949, abria as portas da sua enorme sala de estar, mobilada frugalmente mas com o requinte devido à sua nobreza, aos destacados doutores Luís Figueira, Mário Conde, Cambournée, Vasco Macieira, Belo Morais, Coelho de Campos e Mendes Alves. Uma vénia profunda lhe fizeram aqueles que se consideravam seus discípulos e o consideravam a ele merecedor de todos os elogios. A medicina portuguesa atingia o seu maior expoente a nível internacional e era, agora, reconhecida como estando na vanguarda da modernidade.
Egas Moniz sentiu-se comovido e não o escondeu.
Precisamente dez anos antes tinha sofrido, no seu consultório, um ataque bárbaro. Um doente mental, que apesar de tudo se tinha alcandorado a engenheiro agrónomo, sem os alqueires bem medidos, puxou de uma pistola e varou o professor à queima-roupa. Ao erguer a mão direita para se proteger, Egas Moniz viu-a perfurada por cinco balas. As três restantes atingiram-lhe o tórax e a coluna vertebral.
António de Abreu Freire era um homem de saúde em todos os sentidos do termo. Recuperou bem e depressa e ficou sem maleitas, embora vivesse o resto dos seus dias com a bala que se alojou na coluna dorsal. Nenhum médico descobrira ainda a forma de fazer uma cirurgia tão profundamente delicada.
A paranoia do seu paciente, neste caso um paciente bastante impaciente, pelos vistos, fê-lo perseverar na maneira de diminuir tão declaradas exibições de loucura. Falou disso aos seus visitantes. Disso e de muito mais, claro está, durante as horas em que se mantiveram numa animada conversa. Aproveitou e, puxando da sua incontroversa erudição, explanou a história dos prémios Nobel da medicina ao longo dos tempos e falou da sua admiração pelo sábio espanhol Ramón y Cajal, um dos precursores do estudo da vida psíquica e da fisiologia do cérebro. Era um tema que o encantava sobremaneira, ainda que se pusesse a jeito de malucos que decidissem despachá-lo deste mundo à custa de fogo cerrado.
Houve quem sugerisse que essa tentativa de assassínio fora menos paranoica do que parecia à primeira vista. Afinal, Egas Moniz sempre estivera, desde a sua mais tenra juventude, ligado à atividade política, primeiro como fundador do Partido Republicano Centrista, uma cisão do Partido Evolucionista, depois como apoiante de Sidónio Pais, o breve presidente-rei, que o conduziu ao cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros antes de ter, por sua vez, problemas graves com um atirador em frente à Estação de Caminhos-de-Ferro do Rossio.
Mas a teoria era rebuscada. A maioria dos analistas deixou-a cair. O louco que lhe irrompera pelo consultório era um desesperado por não conseguir controlar os monstros que viviam dentro da sua cabeça. Resolveu culpar o docente. E vingar-se do homem que não o libertava de tantos padecimentos.
Também disso falou Egas Moniz com os seus felizes visitantes. E fez questão de, para terminar, distribuir o seu prémio Nobel por todos os representantes da medicina portuguesa, num gesto que comoveu todos os presentes, embebidos que estavam naquele ambiente familiar e bebidos que estavam de copinhos de vinho da Madeira.
Houve abraços, palmadas nas costas, promessas de reuniões para o mais breve que fosse possível. Depois, os doutores retiraram-se e o professor foi dormir. Fazia frio em Lisboa.