A cegueira da falsa empatia


Estamos a transformar-nos em seres ilusoriamente mais empáticos. Sofremos com o cadáver do bebé que foi encontrado numa praia turca mas descuramos os que nos são mais próximos.


Andamos zangados com tudo. Basta olhar para o lado e vemos alguém com má cara a discutir com a funcionária da caixa do supermercado, num tom insultuoso e desproporcional, e para quem quer ouvir.

No trânsito, quando buzinam, o melhor é ignorar e fingir que nem percebemos que foi para nós, ou habilitamo-nos a dar de caras com um frustrado armado com um taco de basebol, pronto a descarregar a sua fúria no condutor que não “fez pisca” para direita. E aqui vale tudo: berrar um chorrilho de palavrões ou “rebaptizar” o condutor infrator com nomes que podem ir até à quinta geração.

Na escola, um professor agride um aluno com uma violência igual à das produções de Hollywood, que ficam espetaculares no ecrã, mas que na vida real nem ousamos imaginar como seria. Fica no nosso imaginário porque os gestos desta natureza não enquadram numa sala de aula de um liceu de um dos bairros mais aprazíveis para viver em Lisboa. Por outro lado, também temos os pais que fazem esperas aos professores e os ameaçam e agridem por motivos que não lembram ao careca. Um exagero desta intervenção parental num espaço escolar que tem uma estrutura administrativa e organizacional para lidar com situações entre alunos e professores e vice-versa, sem ser necessário a intervenção não solicitada dos pais. Mas tudo é pretexto para ir reclamar sobre o professor, o responsável maior pelos insucessos escolares dos filhos.

As relações amorosas já conheceram melhores dias, pelo menos, maior duração. Bem sei que para muitos, até há uns anos atrás, os casamentos eram só de fachada e que as mulheres eram obrigadas a permanecer naquela união por não terem qualquer alternativa àquela dura realidade. Mas para outros, foram relações que se foram superando e das quais não se desistiu à primeira contrariedade e, por isso mesmo, cresceram e maturaram. Hoje, o divórcio é previsível desde o momento em que aceitamos casar, e não é só porque as mulheres assim o decidam; os homens também terminam os seus matrimónios com uma facilidade que os nossos pais e avós não consideravam sequer. Daí não atribuir às mulheres e às suas novas condições de independência profissional e também emocional, a responsabilidade exclusiva dos números disruptivos das uniões formalmente celebradas.

O peso dos pais envelhecidos e que precisam de apoio familiar é outro sinal da nossa mudança, primeiro enquanto indivíduos e, consequentemente, enquanto sociedade, que se revela na ausência da disponibilidade dos descendentes para providenciar este apoio. Porque é muito penoso, dizem uns, testemunhar todos os dias a degradação dos pais; porque não há tempo, dizem outros, para prestar estes cuidados aos pais, que tantas forças nos levam e disposição. E, ainda há quem diga que outros existem que o fazem muito melhor e são especializados na prestação de cuidados aos idosos.

Não só despenalizámos a interrupção voluntária da gravidez como se elevou esta decisão à condição de estandarte da emancipação feminina, traduzida no poder evidenciado que a mulher tem sobre o seu próprio corpo. Dito assim, parece que durante toda a discussão não houve mais nenhuma questão para além desta, ou que a existência de uma segunda vida foi secundarizada até à sua irrelevância, como acabou por acontecer. Se ainda não nasceu, ainda não existe, logo não conta. O que prevalece é a mulher e a sua decisão naquele momento, independentemente das suas decisões anteriores.

Abandonámos as grandes causas e temos dificuldade em reinventar novas ideias ou interesses que nos motivem, sem grande esforço, e que nos façam desejar sair de onde estamos. O ambientalismo moderno é um exemplo desta tentativa esforçada que todos os dias se reinventa para alcançar os cidadãos com uma mensagem apocalíptica e congregar para a sua causa – a de salvar o planeta – os sete mil milhões que povoam o mundo. Há duas décadas que esta preocupação passou a ser mais abrangente e levada a sério, e nos últimos anos é impossível ignorar a obrigatoriedade da reciclagem, o desperdício alimentar, a emissão de gases, o consumo de água, entre muitos outros.

O curioso é a reação das massas perante as falhas dos responsáveis políticos, sejam pequenas e irrelevantes para a governação do país, ou sejam graves e com consequências danosas para todos, a bitola é a mesma: implacável. É ler a verborreia publicada e atentar nos comentários. Os mesmos comentários servem para todo o tipo de críticas, como se fosse um vírus que contagia os leitores e os comentadores.

Estamos a perder uma característica que nos torna mais humanos e melhores enquanto pessoas: a empatia. Encontramo-nos numa mudança que nos transforma noutros seres ilusoriamente mais empáticos, mas sem a abrangência universal que nos deve ser exigida. Sofremos com o cadáver do bebé que foi encontrado na praia turca, imagem da crise migratória que resiste no mediterrâneo, descurando os que nos são mais próximos e a quem podemos realmente tocar. Zangamo-nos por tudo e por nada, optamos pela ignorância quando preferimos não saber para não termos que atuar, desrespeitamos o próximo porque estamo-nos nas tintas para o seu sofrimento e todos os dias ensinamos este caminho aos nossos filhos.

No meio está a virtude, já diziam os antigos. Mas se há certeza inequívoca é que cada passo que damos com estas bipolaridades exacerbadas nos coloca mais longe da virtude e mais perto do individualismo selvagem, encapotado com o discurso da liberdade, deixando de parte a outra metade da liberdade: o respeito. Não há liberdade sem respeito; há caos e dor.

 

Escreve quinzenalmente