A compra da Media Capital, os Sonsos e os Mafarricos


O que pode mudar o atual quadro é uma informação que não se atemorize com os poderes, os do setor, os da economia e os da política.


A sociedade portuguesa, provavelmente por resquícios do antigamente e por um processo educativo que não estimula a reflexão e o civismo, mantém preocupantes níveis baixos de escrutínio, de participação e de intervenção cívica e política. Esta marca estrutural bafeja negativamente os cidadãos, as instituições e vários setores da sociedade que, em qualquer comunidade moderna, são vitais para uma vivência sã, dinâmica e com sentido de futuro. Amiúde, quem tem responsabilidades na afirmação de direitos, liberdades e garantias aceita reconfigurar a sua atitude a lógicas corporativas e parciais que são pouco transparentes, lesivas do interesse geral e marcadas por profundas incoerências, no limiar da hipocrisia.

Quem tem crianças vê nessas expressões mediáticas ou encapotadas a materialização das personagens Sonso e Mafarrico da série infantil Noddy.

O Sonso e o Mafarrico são os dois duendes que vivem no Bosque Sombrio. São os habitantes mais problemáticos do País dos Brinquedos e estão sempre prontos a fazer brincadeiras, pregar partidas e tentar enganar os residentes da Cidade. A sua vítima preferida é o Noddy, pois eles têm inveja do seu táxi e estão sempre a tentar arranjar maneiras de o pedir emprestado.

O panorama audiovisual nacional tem estado sujeito aos impactos da transformação digital e a uma crónica redução do universo dos públicos que compram jornais, assistem a programas de televisão ou ouvem rádio. Há muito que o quadro é esse. Há muito que há quem esteja sempre no mercado protegido pela banca e pelos poderes instalados, como tem acontecido com o grupo Impresa. Há muito que ninguém faz nada para ampliar os públicos e sublinhar a importância da informação como pilar da democracia. Há muito que muitos, demasiados, se comportam como se estivessem verdadeiramente preocupados com o estado da comunicação social e com os riscos e as oportunidades das dinâmicas do mercado, quando mais não estão do que a ser expressão de interesses corporativos ou pessoais, em linha com o pecúlio mensal do exercício do bitaite, em várias plataformas, em defesa dos instalados.

A possibilidade de compra da Media Capital pela Cofina, como antes a mesma intenção da Altice, foi mais uma oportunidade para assistirmos às expressões visíveis e sub-reptícias dos Sonsos e Mafarricos.

Não se importam com os despedimentos reais e concretizados nos grupos que lhes pagam, mas brandem riscos alheios em outros grupos perante possibilidades de negócios no panorama dos média portugueses, em linha com as dinâmicas internacionais.

Não se importam de promover gritarias histéricas em relação a dinâmicas de nacionalização, de reforço do posicionamento e de ampliação da oferta de conteúdos em português, mas remetem-se a silêncios ou amorfismos perante atropelos à classe jornalística, ao direito dos cidadãos à informação e ao quase abuso de posição dominante dos poderes instalados.

Modelam as suas convicções em função dos humores da carteira ou de uma visão corporativa sem nexo com as dinâmicas da sociedade portuguesa e do panorama audiovisual no tempo digital.

O que pode mudar o atual quadro é uma informação que não se atemorize com os poderes, os do setor, os da economia e os da política.

O que pode mudar a deriva de perda é uma informação que consiga atrair mais gente para as audiências e chegar a novos públicos através de novas respostas digitais, em português.

O que tem de mudar é a impunidade com que estes Sonsos e Mafarricos se movem à descarada ou em surdina para que tudo fique na mesma ou continue na deriva de perda, sempre sob uma pretensa superioridade moral, de estilo ou de certificação de qualidade. É a mesma soberba das pretensas elites urbanas que olham com desdém para quem não é de Lisboa ou da Linha, depois de anos a manterem o país numa dualidade insustentável entre o litoral e o interior. Estes Sonsos e Mafarricos do Bosque Sombrio são uma gangrena para o desenvolvimento e crescimento do país sem cartas marcadas.

E esta gente não se indigna que há quase quatro anos se esteja a encobrir os nomes dos jornalistas avençados do BES/GES, cujas peças muitos de nós provavelmente lemos como sendo isentas e rigorosas, quando estavam modeladas por pagamentos da instituição bancária aos pretensos obreiros da verdade informativa. Que poderes instalados estão a ser, uma vez mais, protegidos?

A Entidade Reguladora para a Comunicação Social acaba de se pronunciar favoravelmente sobre a aquisição da Media Capital pelo grupo Cofina, com algumas observações, residuais quando se comparam com as reservas colocadas pela Agência Portuguesa do Ambiente em relação à implantação do aeroporto complementar de Lisboa no Montijo.

Como tem acontecido, os Sonsos e os Mafarricos, alguns oriundos de grupos de comunicação social em estado comatoso, outros dos posicionados e protegidos, vão voltar a movimentar-se, visíveis ou na sombra, para ampliar a pressão sobre a Autoridade da Concorrência, a quem compete a decisão final sobre este processo de aquisição, em que já foi garantida a manutenção da diversidade dos perfis de comunicação dos diversos projetos após o negócio.

O Noddy pode parecer ingénuo, mas não é parvo e, em último caso, surgem sempre o Senhor Lei e o Orelhas para porem os Sonsos e Mafarricos na ordem.

No atual quadro, por muito poderoso que possa ser o impulso dos instalados e das suas extensões mediáticas e pseudointelectuais, no momento em que há vários projetos em pré-implosão noutros grupos e depois de anuírem a diversas diatribes de vendas ou supostas vendas, não há nenhuma razão para que não se “abram alas para o negócio”.

 

NOTAS FINAIS

Cá fora a brincar. A APA deu um parecer favorável negativo ao aeroporto no Montijo. Uma das invocações é a biodiversidade do Mouchão da Póvoa, o mesmo que a sua incompetência e inoperância deixou destruir, ao não permitir e ao não fazer uma intervenção de reparação do dique que impedisse a contaminação com água salgada. O que se passou e se passa é ambientalmente criminoso. É como se quisesse eliminar um obstáculo ao Montijo.

No seu carro amarelo. Sem oferta de transportes públicos de qualidade, a idolatria das ciclovias em cada nesga de Lisboa e o vergastar do automóvel assumem proporções doentias. Só vão ter noção dos disparates em situação de emergência, quando as viaturas de socorro não se conseguirem movimentar.

 

Escreve à segunda-feira