A mudança de hora, os pântanos e as areias movediças


Nuno Artur Silva já está enleado em mais um labirinto de limitações, manigâncias e afins que o acompanharão nesta produção real como governante.


Sintomaticamente, o Governo tomou posse no dia que trouxe a noite da mudança de hora. Pairam no ar práticas reincidentes, novas proclamações e uma sensação de que o tempo político apresentou e apresentará mudanças de ação e de interação nos próximos quatros anos. Por enquanto, é mais verve que ação, mas há manifesta predisposição para que as convergências do passado não se coloquem em campo com o mesmo perfil. É esse o sentido das entrelinhas dos discursos da Presidência, do Governo e das oposições, mesmo quando enunciam o contrário.

Ninguém divergirá das prioridades conferidas ao combate às alterações climáticas, às respostas ao desafio demográfico, à construção da sociedade digital ou à redução das desigualdades, num quadro de alegadas contas certas orientadas para a convergência com a União Europeia, à melhoria da qualidade da democracia, ao investimento na qualidade dos serviços públicos ou à valorização das funções de soberania. O problema não são as proclamações, as narrativas e as intenções, mas a capacidade empreendedora, de transparência nas opções e de coerência com um sentido de defesa do interesse comum, e não de nichos eleitorais ou de derivas mais ou menos radicais, intolerantes e extravagantes. O problema são as inações, os silêncios e as permissividades intoleráveis.

É claro que é preciso agradar a vários setores e reconhecer com poder quem no passado teve um contributo para a afirmação do caminho pessoal percorrido, como acontece com Nuno Artur Silva, já enleado em mais um labirinto de limitações, manigâncias e afins que o acompanharão nesta produção real como governante. A gratidão em política pode encerrar muitos significados; neste, com o enleio inicial, é pouco mais do que uma recompensa pelos serviços prestados ao colocar os seus suportes audiovisuais em convergência com as ambições políticas do protagonista maior. Foram anos de exercício informal de poderes agora convertidos em funções públicas, depois a atribulação da passagem pela administração da RTP. Passa de escrutinador a escrutinado, em modo não ficcionado.

Em sentido inverso, reitera práticas de profunda ingratidão política: depois das demarcações de José Sócrates, decisivo na ascensão ao poder interno no PS, António Costa resolveu resgatar o tema do pântano, para abocanhar de forma gratuita um Governo de António Guterres. “Este Governo é para quatro anos, comigo não há pântanos” é uma espécie de proclamação preventiva perante uma curva de progresso eleitoral que, tendo atingido máximos, tende a inverter o sinal. Significa que a governação será imune aos resultados eleitorais supervenientes, mas também que não estará disponível para um quadro de negociação parlamentar em jeito de Limiano fatiado?

Há novas proclamações de ação corretiva do passado e de alongamento da ambição estrutural e conjuntural demonstrada nos últimos quatro anos, novos rearranjos de modelos de organização – nalguns casos, pouco claros – e renovados protagonistas, com evidentes debilidades. O desafio neste tempo com novas circunstâncias internas e externas é de, na ânsia proclamada de evitar os “pântanos”, não acabar por cair num terreno de areias movediças, em que muda o perfil do exercício, mas o atolamento é garantido.

O tempo da mudança de hora é sempre um exercício penoso de adaptação da biologia à imposição ficcionada dos fusos horários e das rotinas quotidianas. Sem maioria absoluta e sem a rede do trapézio da anterior solução de Governo, com um Presidente da República com sinais de modelação da exigência e com muitos fatores não controláveis, em especial no plano internacional, este é um tempo de ajustamentos. Da prática às proclamações, da subsistência política à ausência de papel passado, da manutenção de um rumo de não cedência a radicalismos intolerantes ou a exibicionismos políticos irrelevantes para as ambições reais da esmagadora maioria dos portugueses, dentro e fora do território nacional.

A exigência e o escrutínio estão aí, com as mudanças políticas e as atualizações dos ponteiros do relógio para o horário ficcionado de inverno. À partida, teremos menos luz e mais penumbra; à chegada, que seja apenas da mudança da hora.

 

NOTAS FINAIS

ESCURO COMO BREU. A proteção corporativista é uma gangrena da nossa sociedade. O caso da opacidade em torno dos jornalistas que receberam avenças do saco azul do GES, a caminho de quatro anos de proteção a alguns da classe, como o deplorável caso do médico que fazia ecografias enquanto pendiam num órgão disciplinar da Ordem dos Médicos reiteradas queixas sobre o seu exercício clínico, são sintomáticos de uma inaceitável entorse de laxismo e proteção corporativa. A exigência parece ser para os outros e para as ações dos outros.

SOL NA EIRA. O drama da generalização das conversas de café ao patamar de conteúdo das redes sociais é que está a contaminar a atenção em relação ao que verdadeiramente interessa e há demasiada gente a cair no engodo do sensacionalismo e do exibicionismo desprovidos de substância, à esquerda e à direita. Não calibrem os filtros e teremos silly season todo o ano e 24 horas por dia, até enquanto dormimos.

CHUVA NO NABAL. Na equação positiva do aumento do salário mínimo nacional é bom que se tenha a clara noção das implicações que as decisões têm, e não apenas nas empresas. Por exemplo, ao longo dos últimos anos, as instituições particulares de solidariedade social têm estado a suportar os aumentos e as revisões salariais do setor sem ajustamentos nos valores protocolados com a Segurança Social. É justo aumentar o salário mínimo nacional, mas para quem não prescinde de manter a qualidade do serviço prestado aos utentes das valências e ainda está a pagar encargos bancários decorrentes da construção de equipamentos sociais, o exercício é de quadratura do círculo.

 

Escreve à segunda-feira