Continuando a aprofundar a Organização do Poder Político para uma nova era democrática e republicana que só uma moderna constituição feita neste e para este tempo poderá garantir com sucesso a necessária recuperação da credibilização perdida pela sociedade portuguesa nas instituições democráticas que sustentam o próprio Estado de Direito e, quanto a mim, absolutamente irrecuperável no quadro da vigência vegetativa em que se encontra o regime de 1976. Trago esta semana, em traços largos, a minha visão daquilo que deve ser o Poder Judicial, alicerçado numa lógia efectiva e verdadeiramente real do princípio da separação de poderes.
Os Tribunais, enquanto órgão de soberania têm uma função jurisdicional. São competentes para administrar a Justiça em nome do povo com total independência e única sujeição à Lei.
Porém, toda a sua organização e divisão administrativa que é determinada nos termos da actual Constituição da República tem, a meu ver, demasiada interferência do poder político nas escolhas feitas dos seus dirigentes e responsáveis pela execução das políticas internas que aos mesmos cabe definir, promover e desenvolver durante os seus respectivos mandatos. Por isso são os Tribunais o único órgão de soberania (de entre os quatro) aquele que, objectivamente, menos autonomia e independência tem e o que mais interferência recebe directa e indirecta dos outros órgãos de soberania com os quais se relaciona.
As nomeações políticas de altos cargos dos mais variados órgãos de Justiça é disso mesmo bem paradigmático. Senão vejamos:
O Tribunal Constitucional (TC) é nos termos da lei fundamental composto por treze juízes, dez dos quais são designados pela Assembleia da República que, como sabemos tem competência legislativa;
O Procurador-Geral da República (PGR) tutela o Ministério Público que, entre outras atribuições, é só quem tem o poder de condução da investigação criminal e da fase processual de inquérito, é nomeado pelo Presidente da República sob proposta do Governo que, como sabemos tem competência legislativa e principalmente executiva, celebrando contratos públicos, parcerias público-privadas, adjudicações, negócios entre o Estado e os privados, etc.;
O Presidente do Tribunal de Contas (PTC) que é só o órgão que tem o poder supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas do Estado e da República é também nomeado pelo Presidente da República sob proposta do Governo;
O Conselho Superior da Magistratura que é presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, cuja eleição é feita exclusivamente inter pares, conta com outros dezasseis elementos obrigatoriamente magistrados, dos quais apenas sete (minoria absoluta) são eleitos pelos seus pares, sendo outros sete eleitos pela Assembleia da República e outros dois designados pelo Presidente da República;
O Conselho Superior do Ministério Público conta igualmente com membros eleitos inter pares e membros eleitos pela Assembleia da República;
Por outro lado, a estrutura organizativa e hierárquica dos Tribunais é consubstanciada por uma autêntica dispersão de poderes administrativos em função das competências e especialização, o que diminui ainda mais o exercício claro do poder de direcção e de representação real deste complexo órgão de soberania do Estado.
Este é, enfim, o resultado de uma constituição política que, no pós-ditadura salazarista e marcelista, quis garantir uma democracia pluralista que evitasse quaisquer hipóteses de desencadear uma “judicialização” da política, acabando ao longo destes anos todos por ser uma constituição promotora da politização da justiça com cada vez mais notória imunodeficiência adquirida quanto à doença da corrupção que se alastra por todo o regime…
É, pois necessário repensar tudo isto e modificar o sistema de A a Z em toda a estrutura central do Poder Judicial, atribuindo-lhe uma maior e mais eficiente capacidade de actuação, quanto orgânica e hierárquica e verdadeiramente independente e transparente aos olhos do cidadão comum.
Desde logo, fundir o Supremo Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Administrativo e Fiscal, o Tribunal Constitucional e o Tribunal de Contas – que nunca foi presidido por um magistrado, mas sim por políticos (mormente ex. ou futuros Ministros das Finanças) – num único Supremo Tribunal de Justiça que terá, obviamente, no seu seio as equipas de magistrados necessárias, distribuídas pelas respectivas áreas especializadas do Direito Constitucional, das Contas e da Fiscalidade do Estado, do Direito Administrativo e Fiscal – cujos processos que correm termos batem records de vinte e mais anos para cima, o que nos deveria envergonhar – tudo liderado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), eleito exclusivamente pelos seus pares por um único mandato de oito anos.
Quantos aos treze juízes com competência constitucional, para além do Presidente do STJ, deverão, dos restantes doze, oito juízes ser eleitos de entre os seus pares e respeitando a proporcionalidade do território nacional por mandatos de quatro anos. Os restantes cinco juízes deverão ser nomeados pelo Presidente da República (no início do seu mandato) para um mandato único de cinco anos.
Quanto à composição do Conselho da Magistratura deve a mesma ser exclusivamente feita por eleição interna em mandatos de quatro anos, sem nenhuma interferência da Assembleia da República na eleição de magistrados deste órgão que tem, entre outras funções, o poder hierárquico e disciplinar dos juízes. Pelo que não tem manifestamente competência para tal intervenção e eleição a Assembleia da República. Tem, no entanto, competência para legislar os termos e as normas dos estatutos deste e de qualquer outro organismo público. Apenas se deverá consignar a manutenção dos dois magistrados designados pelo Presidente da República.
O Procurador-Geral da República (PGR) deverá ser obrigatoriamente um magistrado do Ministério Público, cuja candidatura ao cargo deverá ter impulso próprio para um mandato único de seis anos, eleito exclusivamente pelos seus pares e ratificada a eleição pelo Presidente da República que, a final, procederá à sua nomeação, após apresentação na Assembleia da República (na configuração nova que abordarei em momento ulterior) das linhas gerais do programa de actuação directiva da Procuradoria-Geral da República.
Já o Conselho Superior do Ministério Público deverá, por maioria de razão, igualmente ser eleito exclusivamente pelos seus pares, em mandatos de três anos com dois membros por designação do Presidente da República.
Com estas alterações muito simples, além de trazerem toda uma nova dinâmica no exercício deste poder soberano que são os Tribunais e identificarem claramente quem é quem e o quê e porquê, haverá mais transparência e mais separação de poderes e nessa altura sim, poderemos finalmente usar o chavão do “à Justiça o que é da Justiça e à Política o que é da Política” sem nos rirmos nem chorarmos, como ocorre regularmente, sempre que algum dos paladinos do regime manda cá para fora esta frase que no actual contexto constitucional não passa de um infeliz soundbite!
Jurista