A direita e o futuro


É na área das pessoas que a direita, tomando como exemplo o que têm feito os conservadores polacos, devia enfrentar o problema da pobreza e das dificuldades das famílias e avançar com um grande pacto nacional contra a pobreza.


Fechadas as urnas, assente a poeira da campanha eleitoral, tudo visto e ouvido, há lições a tirar do que aconteceu à direita em Portugal.

Vimos, ouvimos e lemos que, ao longo dos últimos quatro anos, a direita se revelou incapaz de ultrapassar, primeiro, o discurso do “diabo” e, depois, de apresentar alguma linha estratégica que pudesse sequer remotamente constituir uma proposta de alternativa para o país. E é verdade.

A direita (o PSD, por mais que queira ser “social-democrata”, e o CDS, dito PP) revelou ao longo destes quatro anos que não serviu para nada. Em boa verdade, daquelas bandas não veio uma proposta decente que pudesse levar alguém a optar pelo Centeno do Rio em vez do Centeno do Costa. Na guerra dos Centenos, o Costa ganhou. Lamentavelmente, a direita permitiu que a discussão ficasse ao nível da guerra dos Centenos. 

E, no entanto… Foi um muito infeliz terreno de combate que escolheram para travar a guerra: a guerra dos Centenos estava ganha desde o momento em que Mário Centeno se tornou ministro das Finanças e o equilíbrio das contas passou a ser o objetivo da política pública. O que a direita fez ao longo de quatro dolorosos e tristes anos de austeridade foi preparar o terreno e fazer a sementeira que Mário Centeno, com sorte e mérito, soube colher. É sempre chato alguém tentar apropriar-se dos louros dos outros mas, neste caso, era um desígnio nacional e a batalha está temporariamente ganha. Por Vítor Gaspar e Mário Centeno. Podemos passar à frente, porque já ninguém tem dúvidas de que o país só tem futuro com contas certas e baixando a dívida pública.

O que se esperava da direita é que decidisse apresentar ao país uma agenda para o séc. xxi, um road map para finalmente sairmos do pântano, um plano alternativo para deixar para trás 40 e muitos anos de socialismo soft e caminhar em frente, com o objetivo de encurtar a distância que nos separa da média europeia e evitar o destino preanunciado de sermos a lanterna vermelha do desenvolvimento europeu. 

A legislatura da esquerda começou logo com dois temas que teriam permitido uma clara separação das águas: a reposição de salários e rendimentos na função pública, com a concomitante redução do horário de trabalho, que teria permitido à direita lançar finalmente a discussão sobre a reforma do Estado; e a guerra contra as escolas privadas lançada por razões puramente ideológicas pelo ministro da Educação, um bolchevique da linha Corbyn, que teria permitido um contra-ataque fundamentado no direito de escolha dos pais. Infelizmente, atirou-se a toalha ao chão antes sequer de travar o combate, deixando à sua sorte professores, pais e alunos de escolas privadas, dos quais mais nada se soube.

Entretanto, o PSD elegeu Rui Rio, convencido de que é social-democrata, de centro-esquerda, como se esse espaço não estivesse já preenchido pelo PS, e decidiu disputar a guerra dos Centenos. O CDS decidiu ocupar-se do melhor penteado para Assunção Cristas e, se esta caricatura parecer cruel, convém ter presente que pouco mais há para recordar do mandato de uma mulher brilhante que podia e devia ter feito bem melhor. E assim se passaram quatro anos!

Talvez não pudesse ter sido de outra maneira – as feridas da direita eram muitas e profundas; o divórcio com a classe média, sem remédio fácil. Pode ser que agora, depois da catástrofe que se abateu sobre os partidos da direita e acicatados por novos protagonistas, estes partidos pensem finalmente em propor ao país uma agenda alternativa: têm mais quatro anos para instalar a discussão e dizer ao que vêm. Vão aproveitá-los?

Há dias, numa conversa com um amigo francês, discutíamos o desmantelamento da célebre e prestigiada École Nationale d’Administration pelo Presidente Macron. Dizia-me o meu amigo que seria uma coisa boa, porque a ENA formata os altos quadros da administração pública francesa na “velha política”. A “velha política” consiste em encontrar novas necessidades do Estado e novos impostos e taxas para as financiar. A “nova política” consistiria em fazer mais e melhor com menos dinheiro. 

Os exemplos são numerosos e, em Portugal, começam pela forma do Estado e pela aproximação das populações à administração, talvez através da recriação dos distritos como sede primeira da organização territorial e primeiro escalão de resposta às necessidades das populações, uma ideia que José Ribeiro e Castro tem defendido, esquecendo-se de vez a falsa alternativa da regionalização. 

Concomitantemente, é necessário fazer uma profunda reforma eleitoral com a criação de círculos uninominais que ajudem a separar a cúpula dos partidos da representação política partidária, o que já não seria pouco, para além de uma redefinição do modo de organização do Estado e da sua “governança” financeira.

Mas a “nova política” consiste sobretudo numa profunda e revolucionária redefinição das competências do Estado, nas áreas da educação – direito de escolha dos pais, autonomia de gestão das escolas, estabilidade dos quadros de professores –; da saúde, em que o princípio do Estado-pagador devia afirmar-se sobre o do Estado-providenciador dos serviços; da segurança social, em que têm de ser afirmadas as complementaridades com o setor privado, sob pena de um colapso previsível.

Se a direita não defender um Estado menos caro, mais ligeiro, mais eficiente, mais justo, que dê maior liberdade de escolha aos cidadãos, que cuide do que é comum e deixe à iniciativa privada a margem de liberdade e iniciativa sem a qual não há sociedade civil, quem vai defender isto? 

É na área das pessoas que a direita, tomando como exemplo o que têm feito os conservadores polacos, devia enfrentar o problema da pobreza e das dificuldades das famílias e avançar com um grande pacto nacional contra a pobreza, com vista a erradicar de vez as situações mais graves, definindo um patamar mínimo de rendimento familiar e um conjunto de políticas de alívio das dificuldades das famílias.

Finalmente, a direita portuguesa tem de assumir o seu pecado de ter deixado a questão do ambiente nas mãos da esquerda mais ideológica: o ambiente, que é muito mais do que o aquecimento global, é uma causa de todos; é, como diz o Santo Padre, da nossa casa comum que se trata.

O tempo urge. Quatro anos, como os últimos quatro provaram, passam a correr, e já é tarde para iniciar o trabalho de reconstrução da direita portuguesa. Aqui, a nossa guerra é com o conformismo, com a complacência, com o denominador comum e o adquirido social das últimas décadas. Abriu-se uma nova fase e chegou a altura de a direita portuguesa entrar no séc. xxi, esquecer guerras antigas e olhar para o país com olhos novos. 

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”

A direita e o futuro


É na área das pessoas que a direita, tomando como exemplo o que têm feito os conservadores polacos, devia enfrentar o problema da pobreza e das dificuldades das famílias e avançar com um grande pacto nacional contra a pobreza.


Fechadas as urnas, assente a poeira da campanha eleitoral, tudo visto e ouvido, há lições a tirar do que aconteceu à direita em Portugal.

Vimos, ouvimos e lemos que, ao longo dos últimos quatro anos, a direita se revelou incapaz de ultrapassar, primeiro, o discurso do “diabo” e, depois, de apresentar alguma linha estratégica que pudesse sequer remotamente constituir uma proposta de alternativa para o país. E é verdade.

A direita (o PSD, por mais que queira ser “social-democrata”, e o CDS, dito PP) revelou ao longo destes quatro anos que não serviu para nada. Em boa verdade, daquelas bandas não veio uma proposta decente que pudesse levar alguém a optar pelo Centeno do Rio em vez do Centeno do Costa. Na guerra dos Centenos, o Costa ganhou. Lamentavelmente, a direita permitiu que a discussão ficasse ao nível da guerra dos Centenos. 

E, no entanto… Foi um muito infeliz terreno de combate que escolheram para travar a guerra: a guerra dos Centenos estava ganha desde o momento em que Mário Centeno se tornou ministro das Finanças e o equilíbrio das contas passou a ser o objetivo da política pública. O que a direita fez ao longo de quatro dolorosos e tristes anos de austeridade foi preparar o terreno e fazer a sementeira que Mário Centeno, com sorte e mérito, soube colher. É sempre chato alguém tentar apropriar-se dos louros dos outros mas, neste caso, era um desígnio nacional e a batalha está temporariamente ganha. Por Vítor Gaspar e Mário Centeno. Podemos passar à frente, porque já ninguém tem dúvidas de que o país só tem futuro com contas certas e baixando a dívida pública.

O que se esperava da direita é que decidisse apresentar ao país uma agenda para o séc. xxi, um road map para finalmente sairmos do pântano, um plano alternativo para deixar para trás 40 e muitos anos de socialismo soft e caminhar em frente, com o objetivo de encurtar a distância que nos separa da média europeia e evitar o destino preanunciado de sermos a lanterna vermelha do desenvolvimento europeu. 

A legislatura da esquerda começou logo com dois temas que teriam permitido uma clara separação das águas: a reposição de salários e rendimentos na função pública, com a concomitante redução do horário de trabalho, que teria permitido à direita lançar finalmente a discussão sobre a reforma do Estado; e a guerra contra as escolas privadas lançada por razões puramente ideológicas pelo ministro da Educação, um bolchevique da linha Corbyn, que teria permitido um contra-ataque fundamentado no direito de escolha dos pais. Infelizmente, atirou-se a toalha ao chão antes sequer de travar o combate, deixando à sua sorte professores, pais e alunos de escolas privadas, dos quais mais nada se soube.

Entretanto, o PSD elegeu Rui Rio, convencido de que é social-democrata, de centro-esquerda, como se esse espaço não estivesse já preenchido pelo PS, e decidiu disputar a guerra dos Centenos. O CDS decidiu ocupar-se do melhor penteado para Assunção Cristas e, se esta caricatura parecer cruel, convém ter presente que pouco mais há para recordar do mandato de uma mulher brilhante que podia e devia ter feito bem melhor. E assim se passaram quatro anos!

Talvez não pudesse ter sido de outra maneira – as feridas da direita eram muitas e profundas; o divórcio com a classe média, sem remédio fácil. Pode ser que agora, depois da catástrofe que se abateu sobre os partidos da direita e acicatados por novos protagonistas, estes partidos pensem finalmente em propor ao país uma agenda alternativa: têm mais quatro anos para instalar a discussão e dizer ao que vêm. Vão aproveitá-los?

Há dias, numa conversa com um amigo francês, discutíamos o desmantelamento da célebre e prestigiada École Nationale d’Administration pelo Presidente Macron. Dizia-me o meu amigo que seria uma coisa boa, porque a ENA formata os altos quadros da administração pública francesa na “velha política”. A “velha política” consiste em encontrar novas necessidades do Estado e novos impostos e taxas para as financiar. A “nova política” consistiria em fazer mais e melhor com menos dinheiro. 

Os exemplos são numerosos e, em Portugal, começam pela forma do Estado e pela aproximação das populações à administração, talvez através da recriação dos distritos como sede primeira da organização territorial e primeiro escalão de resposta às necessidades das populações, uma ideia que José Ribeiro e Castro tem defendido, esquecendo-se de vez a falsa alternativa da regionalização. 

Concomitantemente, é necessário fazer uma profunda reforma eleitoral com a criação de círculos uninominais que ajudem a separar a cúpula dos partidos da representação política partidária, o que já não seria pouco, para além de uma redefinição do modo de organização do Estado e da sua “governança” financeira.

Mas a “nova política” consiste sobretudo numa profunda e revolucionária redefinição das competências do Estado, nas áreas da educação – direito de escolha dos pais, autonomia de gestão das escolas, estabilidade dos quadros de professores –; da saúde, em que o princípio do Estado-pagador devia afirmar-se sobre o do Estado-providenciador dos serviços; da segurança social, em que têm de ser afirmadas as complementaridades com o setor privado, sob pena de um colapso previsível.

Se a direita não defender um Estado menos caro, mais ligeiro, mais eficiente, mais justo, que dê maior liberdade de escolha aos cidadãos, que cuide do que é comum e deixe à iniciativa privada a margem de liberdade e iniciativa sem a qual não há sociedade civil, quem vai defender isto? 

É na área das pessoas que a direita, tomando como exemplo o que têm feito os conservadores polacos, devia enfrentar o problema da pobreza e das dificuldades das famílias e avançar com um grande pacto nacional contra a pobreza, com vista a erradicar de vez as situações mais graves, definindo um patamar mínimo de rendimento familiar e um conjunto de políticas de alívio das dificuldades das famílias.

Finalmente, a direita portuguesa tem de assumir o seu pecado de ter deixado a questão do ambiente nas mãos da esquerda mais ideológica: o ambiente, que é muito mais do que o aquecimento global, é uma causa de todos; é, como diz o Santo Padre, da nossa casa comum que se trata.

O tempo urge. Quatro anos, como os últimos quatro provaram, passam a correr, e já é tarde para iniciar o trabalho de reconstrução da direita portuguesa. Aqui, a nossa guerra é com o conformismo, com a complacência, com o denominador comum e o adquirido social das últimas décadas. Abriu-se uma nova fase e chegou a altura de a direita portuguesa entrar no séc. xxi, esquecer guerras antigas e olhar para o país com olhos novos. 

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”