“É importante saber mais sobre cancros hereditários também para não julgar”

“É importante saber mais sobre cancros hereditários também para não julgar”


Sessão de esclarecimento sobre mutações genéticas e cancro decorre esta tarde no IPO de Lisboa. Associação EVITA, fundada por Tamara Milagre em 2011, dá apoio a portadores.


Em 2008, uma jovem mãe que conheceu no Hospital Dona Estefânia despertou Tamara Milagre, então enfermeira, para a história de cancro da mama na família. Ajudar outras mulheres e homens a conhecer o risco de cancro hereditário e a hipótese de tomar medidas preventivas tornou-se uma missão e levou à criação da Evita – Associação de Apoio a Portadores de Alterações nos Genes Relacionados com Cancro Hereditário. Esta semana participam em duas sessões de esclarecimento em Lisboa sobre mutações genéticas e cancro, a primeira esta quinta-feira, pelas 15h, no IPO, e a segunda no sábado, na conferência Visões do Futuro, da Deco Proteste. Tamara acredita que hoje há mais informação e sensibilização do que quando se confrontou com a mutação no gene BRCA-1 e decidiu fazer uma mastectomia e histerectomia preventiva, mas continuam a existir dúvidas. A espera para aconselhamento genético e cirurgia  domina as preocupações. 

A sessão desta quinta-feira no IPO de Lisboa sobre mutações genéticas nos genes BRCA e o risco de cancro é a última da campanha saBeR mais ContA, lançada em maio. Que questões vos colocam mais?

Falamos sobre a importância do teste genético, das consequências para a família e também para as decisões terapêuticas, porque há tratamentos específicos direcionados para os doentes que são portadores das mutações. No final há sempre pessoas que vêm ter connosco e falar da sua história, mesmo que não o refiram em público, e tentar perceber como podem ter aconselhamento. 

Fundou a Evita em 2011. Sente que há mais sensibilização?

Sobretudo depois do caso de Angelina Jolie, em 2012, quando fez uma mastectomia bilateral, passou a ser um tema mais visível. Mas ainda encontramos pessoas que nunca ouviram falar de mutações genéticas associadas ao cancro e de cirurgia preventiva, que acaba por ser a forma mais radical mas também mais eficaz de prevenir a doença. Quando se descobre uma mutação numa pessoa saudável, e na sessão do IPO de Lisboa vamos falar sobretudo das mutações nos genes BRCA, associados ao cancro da mama e ovário, existem três opções: optar por uma vigilância reforçada, adaptada à respetiva mutação – por exemplo, começar mais cedo as mamografias -; existe a hipótese de quimioprevenção, que não baixa por completo o risco; e a cirurgia preventiva. Qualquer decisão tem de ser muito bem informada e tem sido essa a nossa preocupação na Evita. Acompanhamos os portadores de mutações genéticas em três tempos: antes, durante e depois do teste genético.

Quem vos procura e a quem gostavam de chegar?

Quem nos procura mais são mães, por volta dos 30, 40 anos, que começam a perceber que existe uma história familiar de cancro e ficam preocupadas por poderem ter passado essa predisposição aos filhos. O que importa pensar é a história familiar, se houve vários casos do mesmo tipo de cancro na mesma família, seja na linha materna ou paterna, historial de doença em idade precoce, vários cancros – por exemplo, algum familiar que teve cancro da mama ou do ovário – e cancro bilateral, um diagnóstico de cancro nas duas mamas. Normalmente, a pessoa a fazer o primeiro teste genético na família deve ser o sobrevivente de cancro diagnosticado em idade mais jovem e, a partir daí, alarga-se o teste a sobreviventes e pessoas saudáveis.  

Que dificuldades têm sentido?

Precisamos de aumentar a capacidade de resposta para o teste genético. Temos algumas instituições com tempos de espera muito elevados para a consulta inicial, depois para o teste, depois para ter os resultados e, por fim, para a cirurgia preventiva. Todo este tempo de espera gera ansiedade e há pessoas que ficam doentes quando ainda estavam à espera de fazer a prevenção, o que é um sinal mais do que óbvio de que ainda não temos resposta suficiente no SNS. E é lamentável, quando sabemos que o cancro hereditário é o cancro com maior potencial de prevenção e de diagnóstico precoce. Além disso, devido à idade em que surgem estes cancros – mais cedo -, as pessoas podem não prestar tanta atenção aos sintomas e os próprios profissionais podem desvalorizar. 

Que tempos de espera vos chegam? 

Varia muito entre instituições, mas temos locais onde demora meio ano até à primeira consulta, depois mais um ano e tal até ser feito o teste e ter resultados, e só aí se vai para a fila de espera para cirurgia preventiva. Tivemos conhecimento de um caso em que a pessoa já estava no segundo ano de espera para cirurgia preventiva – teve cancro. O nosso objetivo não é ser alarmistas, mas alertar os decisores de saúde. Acreditamos que o cancro hereditário devia ter outra prioridade porque envolve os cancros mais frequentes – mama, cólon -, mas também mais mortíferos, incluindo pâncreas e ovários. É uma oportunidade perdida não identificarmos o portador antes de aparecer a doença, até pelo risco de diagnóstico tardio e metásteses. É preciso investir mais na prevenção, mas isso, a nível geral, representa menos de 1% do orçamento da saúde. Penso que um dos aspetos graves a nível nacional é também ainda não termos dados sobre quantos cancros hereditários existem no país – são casos que acabam por estar mergulhados no cancro esporádico. 

Quais são as estimativas a nível internacional?

Elas sugerem que 5% a 10% dos cancros são de origem hereditária. A Genturis, que é a rede europeia de referência para as síndromes de cancro hereditário, estima que só 20% a 30% dos portadores estão identificados, o que quer dizer que os outros 80% não fazem a mínima ideia.

A transmissão destas mutações aos filhos é uma das preocupações. Ainda há muito desconhecimento sobre o que pode ser feito?

Sim, é uma área em que nos chegam dúvidas. Em Portugal é permitido fazer o diagnóstico genético pré-implantação. O casal que tem a mutação pode optar por uma fertilização in vitro.

Que medidas gostava de ver nos próximos anos?

Precisamos claramente de aumentar os recursos para chegar aos potenciais portadores da mutação, dar formação aos profissionais de saúde para aumentar a referenciação para consultas de aconselhamento genético e reforçar essas consultas, que estão sempre a rebentar. E sobretudo garantir apoio às pessoas: depois de receberem um teste genético positivo, não podem ficar abandonadas, é preciso um acompanhamento mais célere e multidisciplinar. 

Em 2008, mesmo sendo enfermeira, nunca tinha pensado no risco familiar. Recorda muitas vezes a jovem mãe diagnosticada com cancro da mama que a despertou para o risco de ter a mutação e que acabou por morrer. 

Quando tirei o curso, não se conhecia ainda esta realidade das mutações genéticas, o BRCA-1 foi descoberto em 1994/1995. Não se sabia, não se falava e só acordei quando me cruzei com aquela doente, a Sandra, que me salvou a vida. Quando me disse que duas tias dela tinham morrido com 40 anos, com cancro da mama, comecei a pensar… Eu também tinha, do lado paterno. Foi uma surpresa, o lado paterno ter a ver comigo. Felizmente, temos conseguido ajudar dezenas de pessoas mas, cada vez que morre uma jovem, acelero ainda mais o ritmo de trabalho. É inadmissível, em 2019, isso continuar a acontecer. Faço parte, enquanto conselheira, de grupos fechados de doentes oncológicos nas redes sociais onde apanhamos muitas jovens que ainda não foram abordadas relativamente ao teste genético e conseguimos encaminhá-las para o aconselhamento genético. 

O que foi mais importante para si nesse processo que levou à cirurgia preventiva?

Foi ter visto tudo o que aprendi e criar a associação para apoiar pessoas que, de repente, têm decisões difíceis para tomar e não sabem para onde se virar. Sinto uma enorme gratidão por ter tido esta oportunidade.

Sente que uma mastectomia preventiva ainda é, por vezes, desvalorizada?

Por vezes, quando as pessoas não estão esclarecidas ainda há aquela reação de achar que é um exagero e isso pode criar ainda mais dúvidas nas pessoas. Quando foi o caso da Angelina Jolie também me perguntaram, se um dia encontrassem uma cura para o cancro… Se acontecer, ficarei feliz por essas gerações. Foi a minha decisão. É importante que toda a população saiba mais sobre cancros hereditários, também para não julgar.