O Universo de Mia Couto é agora publicado em livro. Como em todas as obras, a memória, a infância e, claro, Moçambique são grãos que se unem. Sobre a criação da figura feminina, Mia Couto confessa que a mãe é o seu chão e é a partir daí que são desenhadas as mulheres das suas histórias. No novo livro fala sobre as palavras e defende que elas não têm dono. Aliás, contaminam o pensamento e o verbo ter é usado para coisas que não podem ter propriedade. As horas também não têm dono e Mia Couto aprendeu a ter noção de um tempo menos cronológico. Pelo menos, foi isso que Moçambique lhe ensinou.
O Universo Num Grão de Areia é uma compilação de textos publicados. O objetivo é não deixar que estas palavras caiam no esquecimento, ou o esquecimento é um mito?
Uma das razões que me fizeram escrever estes textos e fazer intervenções com eles é exatamente vencer o esquecimento. Num país como Moçambique, o esquecimento tem uma função política e social e nós construímos muito do que é o discurso de Moçambique de hoje por acumulação de esquecimentos sucessivos, de amnésias coletivas que foram acontecendo. Não tenho a pretensão de que eu possa contrariar isso, mas acho que a literatura, não exatamente o escritos, mas a literatura pode ter esse papel, sobretudo de tranquilizar.
Então, este livro é sobre memória…
Uma das razões é essa, sugerir que não se esqueça, porque nunca é completamente verdadeiro que a gente se esquece. Faz de conta que esquece e, no fundo, de tanto fazermos conta, essa versão desse passado fica apagada. Mas, por exemplo, se for a Moçambique, pouca gente se lembra do que foi a Guerra Civil, ou a libertação nacional. Eu fui à minha cidade agora e quis visitar aquilo que foi a sede da PIDE na minha cidade e já ninguém sabia bem o que era a PIDE. Os jovens não sabem. Então, essa perda dessa memória, eu acho que é grave. É preciso lembrar que essa história foi importante, porque ela ajuda-nos a explicar quem somos.
E podemos dizer que a memória é esse universo que cabe num grão de areia?
Sim. E a ideia aqui foi também mostrar que esse detalhe, se ele for corretamente entendido, se formos lá com a pinça certa, esse pequeno grão, esse detalhe, pode revelar essa totalidade, pode mostrar que não é um fragmento disperso, mas é uma coisa que em cada um desses grãos está tudo, se olharmos de todos os ângulos possíveis.
Um autor, sobretudo de ficção, como o Mia Couto, publica agora um livro repleto de reflexões. Mas não é isso que faz em todos os livros?
Sim, faço de outra maneira, claro. Nos outros livros, quando estou a escrever ficção, eu não construo isso como sugestão de pensamento. Vou pelo caminho da sensibilidade, eu quero que as pessoas, eventualmente, repensem o mundo por via de uma sugestão mais poética. Aqui, ela tem de estar construída ao inverso, eu quero que as pessoas cheguem ao lado da poesia por via daquilo que é o repensar o próprio pensamento.
Agora sobre memórias recentes. A terra onde nasceu, a Beira, nunca mais será a mesma depois do furacão?
Fui lá quando o furacão tinha acabado de acontecer e pensei que nunca mais a Beira seria a mesma. Mas depois de ter ido lá agora, fiquei surpreso com a capacidade de reconstrução que as pessoas têm. E tudo aquilo que depende do residente da Beira está sendo reconstruído sem estar à espera que alguém venha ajudar. Agora, tudo aquilo que é infraestrutura, que exige um esforço ao nível do Estado, a nível de grande empreendimento, isso evidentemente que precise de intervenção e ainda estamos à espera. Moçambique pediu um certo valor à comunidade internacional. Prometeram um terço, mas do que foi prometido também se pensa que nem tudo vem.
Há a ideia de que Moçambique está condenado ao ciclo do recomeço. Isso é assim tão literal?
Acho que há uma forte tendência dentro de Moçambique para ver isso como um castigo, como uma punição. Porque isso é uma coisa que também está muito impregnada na cultura moçambicana. As coisas acontecem sempre porque há razões que são óbvias, que são as razões naturais, que a ciência pode estudar. Mas há outras razões que a ciência não chega lá, que são os curas, que são resultados de ofensas que se fazem contra equilíbrios cósmicos, equilíbrios com os outros antepassados. Há sempre uma mensagem, há um recado que é dado pelos espíritos de que alguma coisa não está a ser feita bem.
Sentiu que estava num sítio que não era o seu, ou pelo contrário, o que aconteceu criou ainda mais raízes?
Senti uma ligação mais forte, porque era como se visse a terra que me trouxe ao colo, que me contou histórias, magoada e ferida, como se agora fosse a minha vez de a trazer ao colo, a minha vez de lhe contar histórias. Não basta reconstruir a cidade em termos físicos. A cidade é uma outra coisa, a cidade é uma construção que fazemos, uma invenção que fazemos dela. Então, acho que senti como se voltasse ao sujeito da minha infância, como se eu estivesse a fabricar a minha própria infância.
Voltaram as memórias…
Voltaram, sim. Sabendo que elas sempre foram muito inventadas. As minhas memórias são sempre muito inventadas. Quando estou com os meus irmãos, eles estão sempre a contrariar-me porque não foi exatamente assim, mas também ninguém sabe o que é que foi exatamente. Quando se trata de passado, o que é que é exato? É tudo sempre reconstruído.
Além da crónica que inaugura o seu livro, escreveu alguma coisa enquanto esteve lá?
Estava a escrever um livro sobre a minha infância, sobre a minha adolescência. Era um livro que celebrava a minha cidade e, no início, fiquei paralisado, porque de repente eu pensei: “Bem, se a cidade já não está lá…”. Pensei que era preciso, talvez, colocar essa minha história no contexto desta coisa mais recente. Mas depois neguei isso e agora creio que seria um despudor eu usar o ciclone como uma coisa mais do momento. Não quero uma coisa jornalista, portanto vou manter naquilo que eu tinha como intenção, que era reviver o espaço da minha adolescência e da minha infância.
O que aconteceu não vai ter espaço nesse novo livro…
Factualmente não, mas obrigou-me a repensar. O livro foi repensado e hoje estou rescrevendo tudo o que já fiz. Eu já ia, talvez, a metade do livro e foi bom, porque me ajudou a redefinir um pouco melhor a história.
Acha que a Beira vai agora cair no esquecimento do mundo, ou aliás, isso já aconteceu?
Desse ponto de vista, sim. A realidade dos outros só nos toca em momentos trágicos, em momentos em que há um apelo para que a gente possa ter compaixão, possa ter uma espécie de solidariedade que é unívoca, que não é uma relação de troca. Porque, no fundo, as pessoas da Beira interagiram com os outros que estavam lá e houve uma ajuda nos dois sentidos. Os beirenses também ajudaram a que essas pessoas se reencontrassem. Então, acho que a Beira vai voltar a ser esquecida. Por isso, uma coisa que estamos a fazer, eu e os meus irmãos, na fundação, é recolher as histórias que colocam esses moçambicanos da Beira e daquela região atingida como sujeitos e não como objetos, simplesmente. Portanto, estamos a recolher as histórias das pessoas que salvaram outras vidas, que se entregaram generosamente à reconstrução daquelas zonas afetadas. Estamos a fazer com que isso seja registado em vídeo e em texto.
Contadas na primeira pessoa…
Na primeira pessoa. E as histórias permitem-nos recuperar o sentido de dignidade.
A Fundação Fernando Leite Couto, que tem o nome do seu pai, conseguiu muitos donativos?
Conseguiu o suficiente para reconstruir uma escola. E acho que a primeira infraestrutura que foi reconstruída na Beira, pública, foi essa escola que, por acaso, foi a escola onde eu e os meus irmãos estudámos quando éramos miúdos.
A fundação cumpre o papel que sonhou na promoção das letras em Moçambique?
Nós estamos a fazer mais do que sonhávamos, mesmo. Porque não estamos a fazer só trabalho a nível da literatura, estamos a fazer trabalho a nível de música, teatro, de fotografia, de artes plásticas. E o sentido é sempre o mesmo: dar espaço a jovens que não teriam nunca oportunidade, não teriam nunca visibilidade se não houvesse essa intervenção. Nós estamos a dar espaço para publicação em livro, ou para exibição na nossa galeria a jovens que são socialmente excluídos.
O furacão destruiu vidas, casas, estradas. Mas também destruiu barreiras? Aqueles que veem do lado de fora pensam de maneira diferente?
É possível, sim. E, por isso, é importante recolher essas histórias, dar voz a pessoas que vieram por parte de organizações que são especializadas nesta intervenção de apoio, mas também outras, da África do Sul, vieram voluntários a desempenhar um papel generoso nesta desgraça. Mas acho que essas pessoas realmente mudaram. Sei de casos de gente que teve de ser sujeita a tratamento psicológico, porque fizeram a sua intervenção logo no primeiro momento, que era o momento mais dramático, onde as águas estavam a arrastar pessoas. E sei de gente que ia em barcos e chegava a uma árvore onde estavam pessoas refugiadas e o barco não levava toda a gente. Era preciso escolher quem ia na primeira leva. E nem se sabia se ia haver a segunda, por causa da fúria das águas. Então, era preciso escolher entre vidas humanas que estavam lá. E às vezes as pessoas recolhiam as dez, doze pessoas que eram possível recolher no barco e quando voltavam já não estava lá o resto das pessoas. Isso é uma coisa terrível, porque de repente têm uma espécie de função divina, um papel que cabe só aos deuses, escolher quem vive e quem morre.
A certa altura, fala no livro sobre limites e barreiras e diz que “a vida tem fome de fronteiras”. Pensa em Moçambique quando fala sobre isso?
Não só. Penso no mundo inteiro, em que esse esforço de construir barreiras, fronteiras, muros, etc, para separar pessoas é dominante hoje, no presente. Traduz a construção do medo na figura do outro. O outro que não conhecemos é uma ameaça. Isso é a grande construção que permite depois que regimes populistas e de extrema-direita tomem o poder e apareçam como salvação, porque são eles que vão construir as grandes fortalezas. Parece que são elas que nos faltam, quando o que nos falta é exatamente o oposto. O que nos falta é este sentido de nos diluirmos nos outros e deixarmos de ter medo dos outros.
O que pensava o seu pai sobre si?
Tanto o meu pai como a minha mãe tinham alguma preocupação, porque não me viam muito capaz de desempenhar coisas práticas, como por exemplo a escola. Eu era muito ausente, era incapaz de ter uma intervenção de ajuda em casa, porque estragava, porque partia, porque perdia. Então ficou uma certa ideia de que eu até não era muito normal, mas claro que isso era vivido como uma brincadeira e com grande amor. Mas eu assumi essa posição do que não é capaz, do que não tem competências para viver, para deixar de ser criança. E isso, no fundo, me ajudou muito depois, mais tarde, porque percebi que a resposta a isso não era uma exclusão, não era uma discriminação dentro de casa. A mim era-me conferido um outro espaço que seria o espaço da palavra e a minha família me apoia muito nisso.
Era o oposto dos seus irmãos.
Sim, e aceitaram a diferença como um jogo, como uma brincadeira. Eles todos eram diferentes à sua maneira. Há critérios de avaliação que passam sempre pelas notas da escola, pela capacidade de fazer coisas práticas. Lembro-me que um dos meus irmãos, o mais velho, era ele que resolvia problemas, e já ia fazer compras e já pagava as despesas, sabia mexer em dinheiro, eram coisas sérias. E a mim, nunca me punham a fazer isso. Só me lembro de uma vez me mandarem comprar pão, mas arrependeram-se logo, porque seis horas depois eu não tinha voltado para casa. E quando foram lá ver o que é que tinha acontecido eu estava sentado na porta da padaria à espera que a nova fornada de pão viesse e já me tinham avisado que só vinha seis horas depois. Então eu estava ali sentado, à espera e não dava conta do tempo. E não dava conta do tempo, porque já para mim esse grande espetáculo da vida era ver as pessoas passar e eu olhar para o rosto de alguém e inventar uma história para essa pessoa. O tempo não me pesava.
A família foi sempre o pano que usou para camuflar a dor provocada pela guerra?
Sim, acho que sim. Para mim, era como se a família fosse o símbolo dessa casa que permanecia, para além daquilo que eram as ruínas que a guerra ia deixando. Essa casa que é um lugar simbólico, resistia sempre e sabia que ali estava protegido. Era uma família muito nuclear. Começou nos meus pais. Adão e Eva, para mim, estavam ali dentro de casa, porque não conheci nenhum dos meus avós e, portanto, era o meu pai, a minha mãe e três irmãos. A humanidade, durante um certo tempo, era composta por cinco pessoas.
A literatura foi uma das formas para lidar com a guerra?
Sem dúvida, porque foram coisas que me magoaram muito. Houve amigos meus que morreram, houve colegas meus que foram mortos da maneira mais bárbara possível, foram queimados com a família dentro de um carro. Isso não tem maneira de se resolver, a não ser recriando o mundo e transformando isso numa história. Essa realidade só é superada se ela conseguir ser ficcionada.
Fala muito sobre a infância e sobre as memórias de uma família forte. Há aqui alguma relação com Fernando Pessoa?
Sim, há, quando eu comecei a ter as primeiras dúvidas existenciais já na adolescência. Porque a adolescência é um outro período diferente, em que deixamos de ter aquelas grandes certezas absolutas que fazem com que a infância seja um espaço infinito. E, de repente, na adolescência perdemos o chão e é preciso começar a procurar grandes respostas e Pessoa foi o meu terapeuta, quer dizer a poesia dele. Digamos que dava resposta a esta grande angústia de eu pensar que podia não ser normal, uma vez que me via um ser plural e não sabia quem era. Tinha muita gente disputando a minha própria identidade. Então ele deu resposta a isso de uma maneira muito feliz, porque afinal esses múltiplos eus podiam conviver bem e isso era uma condição de ser feliz, mesmo.
Na apresentação do romance do Agualusa, fala das dificuldades em arranjar uma linha narrativa. Fala muitas vezes com o Agualusa quando tem dúvidas?
Muitas vezes, enquanto ainda estão a ser construídas, a gente troca dúvidas, angústias e isso já há muitos anos. E agora mesmo, está acabando o seu livro novo, eu já conheço o livro dele, ele também já conhece aquilo que eu estou a fazer, portanto é muito útil essa troca. Ele funciona quase como uma espécie de pré-editor. Antes de entregar o livro ao editor, ele foi um outro eu, outra parte de mim que esteve a olhar para os meus próprios textos.
Há muito que esta pergunta é feita e a resposta talvez esteja neste livro: porque é que os autores moçambicanos e angolanos se focam tanto no passado?
Esse passado não passou. Não é passado. Interessa-me esse passado na medida em que ele está presente. Repare que são países muito jovens, são países que para nascer precisaram de se esquecer do pai e da mãe. Então, é preciso devolver essa relação com o tempo. Acho que essa é a razão de uma escrita que conduz o Agualusa a investigar o tempo de rainha Ginga, eu na trilogia fiz o mesmo com o imperador Ngungunhane. Só nos interessa esse tempo na medida em que ele pode questionar coisas que são profundamente atuais.
Agora sobre futuro. É um pessimista com esperança, mas qual é a esperança em relação às eleições?
Não tenho dúvidas que os problemas de Moçambique são tão estruturais, são tão de fundo que não basta que haja uma eleição que corra bem. Para que seja estável, é preciso que essa governação seja feita com capacidade de criar novos cenários, que não seja o modelo de desenvolvimento que a gente adotou. Não creio que seja o melhor, não creio que nos liberte daquilo que são só problemas de fundo. É preciso ter coragem para repensar a maneira de fazer política, a maneira de fazer economia, porque nós estamos reproduzindo um modelo que é profundamente colonial. Isto é, Moçambique continua a fazer o que fazia há 50 anos, que era entregar às grandes potências industriais matérias-primas e depois receber delas aquilo que é o produto manufaturado.
Como é que poderia ser alterado?
Seria um génio se fosse capaz de responder. Mas pelo menos é preciso ter vontade de primeiro a pessoa olhar para isto como um problema e depois ter vontade e ter crença de que é possível mudar. Mas não me parece que haja essa crença, parece-me que neste momento intermediário há elites que se aproveitam deste quadro e enriquecem como reprodutores de uma sociedade que continua a ser colonizada.
Porque o povo ainda não tem voz?
Em grande parte, sim. Repare, grande parte dos moçambicanos não frequenta a escola, não existe uma sociedade civil ativa, não existe uma opinião pública que imponha prestações de contas. Esses regimes não se constituem como regimes que se regulam desse ponto de vista que os mecanismos democráticos que integram toda a sociedade estejam lá presentes.
E foi por isso que deixou o jornalismo?
Também, mas por outro lado eu esgotei no jornalismo uma relação que para mim era uma relação de encantamento. Eu adorava fazer reportagem, mas depois passei a ficar na direção do jornal e não podia fazer isso. E também o jornalismo pedia uma relação de falsa verdade com o mundo. Eu queria ter mais tempo, queria não chegar a um sítio e ter que estar em cima do acontecimento, que era o que o jornalismo exigia de mim.
Os jornalistas que querem mudar o mundo são ingénuos?
Não, não. Acho que até é o contrário. Acho que há poucos que querem mudar o mundo e pensam no jornalismo como uma arma para mudar o mundo e para criar um mundo melhor. Pelo menos estou a falar de Moçambique, o jornalismo tornou-se numa coisa mais conformada, o jornalista passou a ser um funcionário e os jornais passaram a servir mais claramente interesses.
Em relação à Renamo, o acordo de paz dá a ideia de uma democracia disfarçada.
O acordo de paz era necessário. Houve ali uma situação que era esquizofrénica, porque havia um partido dentro do Parlamento que foi eleito democraticamente e que participava no Parlamento e, ao mesmo tempo, tinha um exército privado, a quem podia recorrer sempre que era preciso fazer uma ameaça. Isso tinha de acabar. Todos os países do mundo têm um exército. Então, até agora isso tinha de ser resolvido. Este acordo de paz, mais do que um acordo de paz, foi reiterado, e permitiu realmente o exercício de integração das forças militarizadas, das armas.
No espaço de três anos, Moçambique passou de exemplo de partilha e convivência inter-religiosa para palco de ação de supostos islamitas radicais. Como acha que foi possível?
O problema é que não se percebe exatamente o que se está a passar. Isso passa-se exatamente numa província do norte de Moçambique e nem sei se realmente a explicação religiosa pareça ser uma explicação completa. Haverá um componente religiosa, mas repare, a grande maioria dos moçambicanos que são muçulmanos não têm nenhuma relação com esta violência. Pelo contrário, são vítimas dessa violência. Tenho a suspeita que para perceber esses ataques que ocorrem em pequenas aldeias de Cabo Delgado, onde agora está o projeto de gás natural, é preciso procurar outras respostas.
Em Moçambique, os pobres estão mais pobres e o número de milionários disparou entre 2015 e 2018. Era este o seu sonho para o país? O que falhou?
Acho que isso é o que está a acontecer no mundo inteiro, não é uma coisa de Moçambique. Todos os estudos económicos daquilo que são os vários mundos deste mundo mostram que isso é uma tendência que está a acontecer – maior concentração de riqueza numa faixa pequena de população. Mas claro que não era esse o sonho. Nós tivemos um grupo de gente em Moçambique no poder, logo a seguir à independência, que queria fazer uma revolução socialista, que queria uma sociedade igualitária, que queria mudar radicalmente o mundo e fez alguma coisa mais. Eu fiz parte desse projeto e esse grupo chegou a ter poder, mas acho que depois, realmente, falhou.
Era uma utopia?
Não é uma utopia. Nós falhámos por razões externas e internas. O discurso oficial em Moçambique sempre aponta para razões apenas externas, que era o contexto adverso de haver ali o apartheid, que era um poder branco que tinha medo que houvesse um Governo negro em Moçambique. Ainda por cima, um governo negro comunista. Havia a Rodésia do Sul que ainda existia com uma minoria branca que dominava uma maioria negra naquilo que é hoje o Zimbabué. Fomos atacados militarmente por essa gente de fora. Acho que isso não é o principal. As causas internas são as principais. Havia uma grande ilusão de que o mundo é uma coisa fácil de mudar. Muda-se o regime e muda-se a orientação económica e pronto. Não é assim, é muito mais complicado.
Felizmente?
Felizmente, porque isso quer dizer que as pessoas são muito mais complexas do que parecem. Não podem ser reduzidas a uma fórmula.
Uma curiosidade para mudar de tema. No livro, diz que ainda chama cartas aos e-mails. Porquê?
Sou nostálgico de uma relação em que acho que havia um tempo, que era o tempo que demorava a escrever essa carta, a repensar essa carta. Gosto da ideia duma caligrafia que marca um papel, gosto da ideia de se perceber que há uma rasura que não pode ser disfarçada. Mas isso tem a ver com um sentimento nostálgico do mundo, que o e-mail não resolve. Ainda hoje, quando se trata de dizer alguma coisa que é realmente importante, que passa pelo afeto, eu mando uma carta. Aos meus filhos, quando fazem anos, à minha mulher, às pessoas que eu quero muito, eu mando carta. E recebo também, há pessoas que sabem que me comove muito mais essa relação quase física.
Na sua obra As areias do Imperador retoma personagens femininas que atravessam toda a sua obra – a mulher mãe, mistério, futuro. Quem é a mulher que ressuscita em cada livro?
Essa mulher é aquilo que eu invento como sendo a mulher moçambicana ou a mulher do mundo, que é muito construída em cima dessa figura feminina que foi a minha mãe, que foi a grande construtora, agregadora da vida na minha história e na história da minha família. Acho que ela, de uma maneira heroica, carregou aos ombros aquilo que era cuidar dos filhos, defender a nossa dignidade, defender o nome da família quando tudo apontava para uma degradação social, que era o final de uma sociedade colonial. Essa grande presença da minha mãe é o chão onde eu construo esta imagem do que é a mulher.
Nunca pensou em escrever um livro sobre alguma coisa que lhe seja distante, que veja através de uma janela que não é a sua?
Hei de transportar sempre o meu quintal, o meu chão para onde quer que eu vá. Mesmo que eu escreva fora de Moçambique sobre um assunto qualquer, acho que é a de sempre, porque isso sou eu. Essa infância que trago dentro de mim é a minha pátria, é lá que vou buscar tudo.
Então, só escreve aquilo que sente…
Posso não ter vivido pessoalmente. Por isso é que é importante que esse desdobramento em um outro que aconteceu na adolescência.
E voltamos a Fernando Pessoa.
Exatamente, voltamos a Fernando Pessoa. E voltamos a esta ideia de que nós somos, não produto de alguma história individual, mas de cruzamentos de relações, de histórias com os outros. E esses outros que a gente inventa dentro de nós.
A certa altura diz que as palavras não têm dono. Ainda bem que assim é?
Ainda bem. Não pode ser de outra maneira. Não pode ser. Não existe a ideia de posse. Aliás, a ideia de posse é uma ideia que contamina muito o nosso pensamento. Nós usamos o verbo ter para coisas que não podem ser propriedade. Eu faço, você faz, eu tenho três filhos. Mas eu não tenho nada, os filhos não se têm. Era mais bonito usar o verbo ser. Eu sou três filhos. Isso soaria estranho, mas também nós normalizamos a aplicação de um verbo ter em coisas que não se têm. Eu tenho lá uma terra. Ninguém tem terras. Por exemplo, eu tenho três corujas lá em casa que salvei quando eram pequeninas, mas não as tenho. Há todo um abuso quando nós nos referimos a coisas que vivem connosco e que nunca podem ser apropriadas, estão fora desse quadro.
É daí que parte a individualização?
Sim, acho que nos ensinaram a possuir aquilo que se ama. E a relação que eu tenho com os bichos, com as plantas, ensina muito que eu fique tranquilo, porque amar é isso. Muitos desses pássaros e animais que capturei, que eram animais selvagens, eu senti, quando os tive de libertar, uma certa dor, mas isso foi uma escola para mim. Eles têm de viver no seu espaço, no seu mundo e isso é uma educação, porque eu também fui criado para confundir amar com ter. É uma aprendizagem. Lembrei-me agora de uma canção do Caetano Veloso que é se você realmente ama, então deixa esse amor voar, deixa que ele possa não acontecer.
Catalogamos as espécies. Fazemos o mesmo com as pessoas?
Essa obsessão de que para entender o mundo é preciso ter categorias, é preciso meter as dúvidas dentro de caixas e dar-lhes nomes, isso é terrível. É assim que o cérebro humano funciona, o cérebro humano tem de arrumar perceções dentro de grandes etiquetas, mas realmente depois é preciso saber duvidar disso. É preciso aprender que isso não é sempre verdade. Nós estamos sempre a fazer isto: “Fulano quem era? Ah, era um espanhol. Eu já sei como são os espanhóis, já sei como são os muçulmanos”. Quer seja para os etiquetar positivamente ou negativamente, mas a ideia é dizer que se eu sei que alguém é cigano, ou homossexual, eu não sei nada ainda. Só sei quando eu perceber que essa pessoa que está à minha frente é uma pessoa singular, que só se explica através da sua própria história e não através da pertença a uma categoria qualquer. E é isso que a ciência diz.
“Estamos a reproduzir aquilo que já foi pensado por outros”, diz no livro. Pensa nisso quando escreve?
Muitas vezes temos ideias e pensamos que essas ideias são recentes e grande parte daquilo que é o pavimento do nosso pensamento são coisas de Newton, Descartes, dos gregos, dos romanos, que criaram aquilo que são fundamentos de um pensamento ocidental.
Mas o pensamento vai evoluindo.
Pois vais, mas a gente continua a pensar. Por exemplo, imagine o pensamento mecanicista que ajuda o homem e os seres através da química, através da física, através desse conhecimento que aponto para aquilo que é uma realidade estável, definitiva. E a vida não pode ser explicada assim, só pode ser explicada do ponto de vista de um outro tipo de pensamento, orgânico, em que os seres se estão recriando a todo o tempo, com a permissão de um certo caule. Mas esse desejo de encontrar uma resposta fácil está sempre presente, como se a realidade fosse uma coisa. Por exemplo, a ideia de que tudo aquilo que nós somos está escrito nos genes, como se os genes tivessem letras – até já estão nomeadas as quatro letras do nosso alfabeto cromossomico. Mas não é assim, é muito mais caótico. Depende muito mais das relações que fogem a essa compreensão tão mecanicista do mundo.
Se não existisse Moçambique, teríamos Mia Couto como escritor?
É difícil dizer. O que posso dizer é que realmente tenho uma dívida muito grande com o que aprendi, sendo parte desse país. Estou mais disponível a perceber coisas. Estou mais disponível a não ter medo das minhas próprias incertezas, estou mais aberto a pensar com o meu corpo, não só com o cérebro. Estou mais disponível a ter uma outra noção do tempo que é um tempo mais circular, menos cronológico.