Regresso às 35 horas fez disparar horas extra no SNS

Regresso às 35 horas fez disparar horas extra no SNS


Reforço das contratações não foi suficiente para compensar redução de horários. Enfermeiros fizeram mais 683 mil horas em 2018. Recurso a trabalho suplementar e tarefeiros bateu valores dos últimos anos.


O número de trabalhadores do Serviço Nacional de Saúde aumentou em 2018 mas nunca foi tão necessário recorrer a trabalho extraordinário e prestadores de serviços médicos para completar as escalas, sobretudo nos hospitais. 

O relatório social do Ministério da Saúde e do SNS, a que o i teve acesso, revela que o trabalho suplementar aumentou 11% no ano passado, atingindo o valor mais elevado de que há registo: 13,1 milhões de horas extra, mais 1,3 milhões do que no ano anterior, representando o pagamento de 263 milhões de euros. Já as prestações de serviço, o recurso aos chamados “tarefeiros” para completar sobretudo turnos na urgência, representaram uma despesa global de 105 milhões de euros, uma subida de 7,3% face a 2017. Isto quando o objetivo traçado pelo Governo para esta legislatura era depender cada vez menos de trabalhadores externos.

Números pecam por defeito

Os enfermeiros são o grupo profissional onde se regista o maior aumento de trabalho extraordinário e a principal justificação é a redução do horário de trabalho para as 35 horas, que no ano passado foi alargada aos trabalhadores com contrato individual de trabalho. 

Com menos cinco horas de trabalho por semana, o reforço de 1373 enfermeiros – foram o grupo profissional que mais aumentou em 2018 – não chegou para garantir o trabalho dos centros de saúde e dos hospitais e os enfermeiros acabaram por fazer mais 683 mil horas extra em 2018 do que no ano anterior, num total de 3,2 milhões de horas, uma subida de 27%. 

Entre os enfermeiros que fizeram trabalho suplementar há uma média de 115 horas extra ao longo do ano, revela o relatório. Guadalupe Simões, do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, diz ao i que o balanço não surpreende, já que desde o início se percebeu que o reforço de pessoal não estava a chegar para responder às 35 horas. A dirigente sublinha ainda que muitos milhares de horas extra não são sequer contabilizados, pelo que o número peca por defeito. “Há muitas horas extraordinárias que entram em bolsa de tempo, não são pagas. Os enfermeiros sabem que lhes são devidas, as administrações também mas nunca chegam a ser usadas. Como a perspetiva é serem pagas em tempo e como todos os que estão são necessários para trabalhar, continuam por pagar.” 

Guadalupe Simões explica que neste momento, além da falta de enfermeiros e da sobrecarga dos que estão, acaba por haver um círculo vicioso que alimenta ainda mais a necessidade de trabalho extraordinário. “Tem havido uma grande rotatividade de enfermeiros e sobretudo os hospitais do interior e o Algarve não conseguem reter profissionais. Há admissões, mas há situações em que saem logo no dia a seguir”. O recurso a trabalho suplementar acaba por ser a solução.

Outra questão, salienta, é o facto de desde 1992 não haver melhorias na compensação do trabalho por turnos. Durante o resgate financeiro, o pagamento das chamadas horas de qualidade esteve sujeito a um corte de 50%, entretanto reposto, mas Guadalupe Simões diz que atualmente os turnos da tarde e da noite acabam por ser “pouco atrativos” perante as novas responsabilidades e pressão sobre o sistema de saúde e os enfermeiros que podem pedir horário flexível, nomeadamente quando têm filhos menores, acabam por ficar menos vezes nesses horários. “Pressiona os enfermeiros mais velhos a fazer esses turnos. Fazem tardes, noites, a sobrecarga é grande e muitas vezes acabam por ter de faltar e aí torna a ser preciso recorrer a trabalho extraordinário. É uma pescadinha de rabo na boca que o Governo não resolveu nem quer resolver”, diz a dirigente sindical, admitindo que essa é uma das explicações para o aumento do absentismos nos últimos anos. Na visão do SEP, seria necessário um reforço de 20 mil enfermeiros para garantir a resposta adequada nas diferentes valências do SNS: centros de saúde, hospitais e rede de cuidados continuados.

O trabalho suplementar aumentou também 12% entre os técnicos superiores das áreas de diagnóstico e terapêutica. Fizeram cerca de 746 mil horas extra, uma média de 230 horas para os 3 247 técnicos a quem foi pedido trabalho suplementar. Entre os técnicos superiores de saúde, o recurso a horas extra aumentou 4%, num total de 152 383 e uma média de 212 horas extra. A redução do horário de trabalho pesou sobretudo nestes grupos profissionais e no final de 2018 havia 95 278 trabalhadores do SNS com horário de 35 horas, mais 27 768 do que no ano anterior.

“Nem com horas extra lá vai”

No caso dos médicos, que mantiveram na sua grande maioria o regime de trabalho de 40 horas acordado em 2012, o aumento do trabalho suplementar foi menos expressivo (+2%) mas continuam a ser o grupo profissional a quem são pedidas mais horas extra. No ano passado foram cerca de 5,7 milhões – quase metade das horas extra feitas nos SNS. Em 2018, cada médico que fez horas extraordinárias trabalhou mais 303 horas, um cenário contestado pelos sindicatos, que este ano chegaram a acordo com o Governo para baixar de 200 para 150 horas o limite a partir do qual podem recusar trabalho extraordinário, equiparando-se assim ao resto da função pública. 

O relatório mostra que há especialidades onde o número médio de horas extra é bastante superior. É o caso das especialidades cirúrgicas, em que o trabalho suplementar permite também a recuperação de cirurgias no âmbito do SIGIC mas também das especialidades mais deficitárias como anestesiologia, com uma média anual de 460 horas extra em 2018. 

Ao i, uma anestesiologista de um hospital de Lisboa explica que além das seis ou 12 horas extraordinárias previstas no horário semanal para turnos de urgência, consoante se trate de um período de trabalho de 40 ou 35 horas, são várias as semanas em que é necessário fazer mais um banco de 24 horas em trabalho suplementar. E mesmo assim no período de verão houve momentos em que as escalas ficaram incompletas e foi preciso acionar os planos de contingência. “Estamos num ponto em que nem com horas extra lá vai, se não os médicos viviam no hospital”, disse ao i a médica, que pediu para não ser identificada. 

Saídas para o estrangeiro e privado que não são substituídas são um dos motivos para o elevado recurso a trabalho suplementar, justifica. E uma coisa leva à outra: além das diferenças de remuneração, a médica salienta que o facto de quem fica no SNS estar mais sobrecarregado e ser pressionado a mais trabalho extraordinário acaba por ser um fator de desmotivação. Uma obstetra de Lisboa relata também uma situação de crescente sobrecarga, com pelo menos um banco suplementar por mês desde o início do ano, situação que se acentuou no período de férias. “Atualmente, com cerca de 40 horas extra por mês, em março ou abril cumprimos o limite de 150 horas extra que devíamos fazer no máximo por ano, fora as que vamos continuar a fazer. É excessivo, principalmente para quem tem filhos. Ficamos cansados, as noites custam a recuperar e não há dinheiro que pague isto. Se pudesse não fazer, não fazia”. Convertendo as horas extra e recurso a prestação de serviços para horários de trabalho semanais de 40 horas, equivaleria neste momento ao trabalho de 4000 a 5000 médicos. 

Ao i, o Ministério da Saúde assegurou que, para responder ao aumento de horas extraordinárias em 2018, houve já este ano um reforço das contratações, entre as quais 974 enfermeiros. Em relação ao aumento das prestações de serviços médicos, o Ministério da Saúde salienta que tem vindo a desenvolver esforços para garantir a retenção de profissionais no SNS, invocando medidas como as majorações das horas extraordinárias ou a melhoria do regime de incentivos para a contratação de médicos para regiões menos favorecidas.