No início, um sobreiro. Como no fim, porque ao cabo de 50 anos difícil será que alguma coisa se mantenha como era para lá da paisagem. E porque estamos no sul, a “sul do Tejo, 1946”, precisamente. Aquele sul historicamente dominado pelos grandes proprietários de terras, umas perdidas para a reforma agrária, outras, as que sobraram, a sucumbirem ao longo dos anos seguintes numa morte lenta, às mãos dos tempos e da banca. Importante seria por isso voltarmos a olhar para esse mesmo lugar 50 anos depois, já nos loucos anos da década de 1990, em que já pouco sobrará daquele início para lá da paisagem. Então o sobreiro, voltaremos sempre, numa linha temporal que, como a História, se faz em círculos, àquele sobreiro que o que mais testemunha são tragédias. Delas, ninguém se livra aqui.
Nem os trabalhadores nem o patrão, nem os oprimidos nem os opressores. “O que é mais trágico é que conseguimos compreendê-los a todos”, diz o realizador e coargumentista, Tiago Guedes. Estreado nem há um mês no Festival de Cinema de Veneza, na primeira vez em 14 anos em que um filme português chegou à sua competição principal, A Herdade, que chegou a semana passada às salas portuguesas já como o candidato português aos Óscares de 2020, distingue-se entre a filmografia do realizador, mas não só.
A partir da história de um homem – um privilegiado latifundiário que faz o que pode para deixar as suas terras e trabalhadores a salvo dos tentáculos do Estado Novo mas que os tempos da desejada democracia hão de atirar para a desgraça – que se cruza com a história de como, enquanto país, chegámos aqui, A Herdade é um filme de uma ambição rara no cinema português. Uma ambição concretizada num imponente épico em tudo justo.
Na nota de intenções para este filme, escreveu que o que aqui se conta é a história de um homem “maior do que a vida”. Mas a grandeza não está só nesse personagem, João Fernandes [Albano Jerónimo], está na verdade em todo o filme, um épico a atravessar 50 anos da História do país, através da história de uma família. É um registo raro não só no cinema português e único na sua filmografia. Havia um desejo de fazer um dia um filme deste género?
Esse lado épico é dado por muitas coisas: é dado pela dimensão do personagem, é dado pela forma como são filmados os espaços e pela própria duração de época e a forma como a história atravessa todos esses anos. Se havia um desejo, tenho sempre um desejo de fazer cinema e vou-me adaptando muito a cada um dos filmes. Este pedia isso, no meu entender, obviamente. Outra pessoa pegaria nisto de outra forma. Havia um desejo base de fazer um filme de grande dimensão, já à partida era um dos desejos do Paulo Branco [o produtor], portanto quando concordei já ia com essa noção e vontade também.
E é importante que se fale nisso: este foi, desde o início, construído por várias pessoas. O Paulo Branco, de quem partiu a vontade de fazer este filme, o Rui Cardoso Martins, que escreveu um primeiro argumento…
O Paulo e o Rui trabalharam o argumento inicial, eu entrei quando já estava concluído esse trabalho do Rui – aliás, cruzei-me muito pouco com o Rui. Depois eu é que me apropriei um pouco do argumento, e também o alterei e coescrevi, por cima do que já havia.
Nos créditos finais, há um grande agradecimento ao José Samuel Lupi, um conhecido cavaleiro tauromáquico, também ele proprietário de uma das maiores herdades portuguesas. Além de o filme ter sido rodado na sua herdade, a Barroca d’Alva, também o protagonista desta história, João Fernandes é inspirado nele, correto?
Isso está na génese da ideia do Paulo. O Paulo queria falar de um personagem assim e de alguém que atravessou a História daquele ponto de vista, daquela posição.
Mas que peso acabou por ter essa figura na construção do argumento e desta personagem em concreto?
Quando peguei no filme, disse ao Paulo, que também tinha essa vontade, que não queria fazer de todo uma história colada a uma realidade…
Quiseram transformá-la em algo mais universal.
Sim. E separada de qualquer coisa concreta. Quando peguei no argumento fiz questão de não querer saber o que é que era verdade, o que é que era mentira e, a partir daí, ficcionou-se tudo.
Apesar de não fixada numa realidade ou numa figura concreta, o que se conta em A Herdade a partir da história da vida de um homem é a História do país. A história de como chegámos aqui, no fundo, dos tempos do Estado Novo até a uma fase já pós-adesão à CEE.
Um dos temas do filme, através da História do país e da história da família, é mesmo o das heranças. As que recebemos e as que deixamos, que vamos deixar para os outros. Isso está lá metaforicamente.
E é muito interessante verificarmos como, a partir daquela herdade que era uma espécie de oásis num país em ditadura, uma “zona franca” como os homens do poder lhe chamam no filme, a mudança que aquele personagem desejava, que chega através do 25 de Abril, será o que acaba por o levar à sua própria desgraça.
São as ironias de todas estas mudanças.
E a verdade é que uma outra herdade à frente da qual esteve José Samuel Lupi, a Herdade do Rio Frio, estava em 2017 em processo de insolvência.
Isso aconteceu muito a muitas dessas herdades, com todas as mudanças que houve e a forma como os bancos se foram apoderando delas, pelo individamento enorme por parte dos proprietários, que as foram perdendo. O neoliberalismo tem tido estas consequências.
O filme segue uma estrutura circular: estamos constantemente a voltar àquele sobreiro da cena inicial. E também muitas das elipses seguem uma mesma forma: alguém ao volante de um carro, com essa mesma paisagem como pano de fundo.
Foram decisões que nasceram já na escrita, outras foram soluções descobertas já na montagem, que é uma reescrita, sempre, do filme, com base no material que se conseguiu filmar. Quando começámos a filmar, o argumento tinha muito desta estrutura mas não completamente. Houve muitas coisas que foram descobertas na rodagem e redescobertas na montagem.
A Herdade leva-nos de volta a um cinema mais clássico. O_próprio Tiago cita, na nota de intenções, duas correntes de inspiração: por um lado Sergio Leone e Anthony Mann, nessa ideia dos “westerns perdidos no meio do nada”, por outro o melodrama clássico de Vincente Minelli e de Elia Kazan.
Queria muito mexer num tipo de cinema clássico, num tipo de cinema antigo, e assumo-o logo no genérico, na maneira como atiro os créditos, em que assumo logo que estamos a falar de um cinema fora desta época. Por outro lado, a utilização dos silêncios e dos tempos já não vem desse cinema clássico, que teria esse tempo nos westerns, mas nos melodramas, muito mais dramáticas, de eventos uns atrás dos outros. E, no entanto, acho que se fundem aqui estes universos. Portanto, não acho que se possa considerar absolutamente clássico, apesar de ter querido ir mexer nesse universo muito clássico de cinema antigo, de que gosto muito.
O_ritmo imposto a este filme é presicamente um dos aspetos formais, e não só, que mais o marcam. É um filme de muitos silêncios, de diálogos de olhares, e de espaços vazios, de contemplação mas com um propósito. Ao mesmo tempo, não se pode dizer que A Herdade não seja um filme narrativo. Como é que o filme se foi construindo entre estes dois planos?
Nunca estive muito preocupado com a duração. A duração acaba por ser essa [166 minutos] porque era preciso tocarmos no início de uma família e depois no seu fim, de alguma forma. Por isso é que temos de tocar todas essas épocas, num paralelismo com as épocas do país também. Agora, os silêncios e a profundidade desses silêncios foram sempre a minha intenção. E foi essa a grande luta na montagem: descobrir o tom certo para isso, de forma a os silêncios existirem, e existirem com propósitos, e não apenas como contemplação. Ou seja, são silêncios tensos, dramáticos, silêncios que nos estão a dizer coisas. Que não nos dizem exatamente o que nos estão a dizer, mas estão a comunicar connosco. Esse era o tom pretendido do ponto de vista do percurso familiar.
Isto leva-nos à questão da escolha deste elenco, que tem sido elogiadíssimo por quem já viu o filme, que tem aliás o mérito de trazer para o grande ecrã vários atores que o público português não está habituado a ver no cinema. O próprio Albano Jerónimo…
… nunca tinha feito um protagonista em cinema. Para mim foi muito simples fazer a escolha dos atores, porque já conhecia minimamente a grande maioria deles, que vem do teatro, em que também trabalho [como encenador]. Para mim foi muito simples: para os mais novos fiz algumas audições, mas já a um pequeno grupo, que quis conhecer.
Sim, quem acompanhar as várias áreas da representação sabe perfeitamente quem são estes atores.
Sim. E foi um processo natural. O Albano era uma escolha óbvia. A Sandra era também a minha escolha, fiz só uma pequena audição para tirar dúvidas no que diz respeito sobretudo a fisionomias da família e ficou claro que teria que ser ela a fazer o papel.
O que o levou a pensar de imediato nesses dois nomes?
O Albano porque não há muitos atores que reúnam aquelas características físicas e qualitativas de representação. É uma combinação que não é muito simples e que o Albano tem. E tem outra coisa: sendo a pessoa mais querida do mundo, tem ao mesmo tempo um lado pesado. Um lado triste e pesado, que era o que eu queria para estes personagens. Precisava que a angústia deles existisse nos silêncios e que houvesse um peso muito certo, a que nem quero chamar carregado porque não era essa a intenção, o que eu queria era que eles existissem nos silêncios. E eles são dois atores muito capazes de fazer isso. Não escolhi atores de acontecimentos, de falas, de texto, não foi por aí. Precisava das presenças, precisava de os sentir no filme.
A história começa na década de 1940, depois há uma elipse para 1973 e, sem que demos por isso, chegamos a 1974, num dos momentos mais poderosos do filme: quando, numa viagem de regresso a casa, Leonor [Sandra Faleiro] liga o rádio do carro e, de repente, começa a Grândola Vila-Morena, para, segundos depois, passar uma coluna militar por eles. Questiono-me sobre se essa referência foi entendida quando o filme estreou em Veneza e depois em Toronto.
A passagem do tempo de 1973 para 74, e até para 75, é dada de uma forma muito subtil, que foi intencional e que tem a ver com a gravidez. O Grândola era uma cena que sabia que ia ser muito forte em Portugal, pelo menos tinha essa esperança…
É porque, com essa subtileza com que se faz passar o tempo nesse período, a revolução chega-nos com tanta surpresa como terá chegado naquele dia para a maior parte das pessoas. Não estamos de facto à espera daquilo naquela noite, depois de uma festa de noivado em Lisboa a reunir parte da elite que apoia o regime.
Sente-se que está iminente, mas ali temos o concreto do momento. E para um português será sempre mais forte do que para um estrangeiro. No entanto, no que mostrámos lá fora, penso que também se percebe, porque a letra é traduzida e tem [a expressão] “o povo é quem mais ordena”. Percebe-se que o teor da música que está a dar é qualquer coisa que não é suposto e, nesse sentido, passa. Agora, não lhes está no ADN histórico como nos está em nós. Ouvimos aqueles passos ou o primeiro verso e aquilo faz-nos arrepiar, independentemente de estar no filme ou não. A forma como está no filme é inesperada, porque vimos de um ambiente muito nobre em que parece que está tudo bem no país e, de repente, levamos com aquilo. Percebemos que o país está a mudar à frente deles. Gosto muito também desse momento.
E é interessante a forma como esse dia, o 25 de Abril, marca logo o início da tragédia daquela família, isto num momento em que ninguém percebe ainda no que aquela revolução irá dar. A história daquele parto é já uma metáfora para o que virá a seguir.
Claramente. É o princípio de um fim. O que acontece ali é o inicio da falta da esperança entre eles. Há ali um desenlace que estava se calhar erradamente posto numa esperança daquele filho que vinha e, de repente, aquela tragédia acaba com isso. No entanto, o que queria muito era contrastar a alegria popular com o silêncio de morte que está dentro daquele quarto. Queria muito este contraste, esta diferença.
A partir daí, nada de bom virá.
Sim, embora deixemos de acompanhar isso. Damos um grande salto grande no tempo e fica na nossa imaginação o que terão sido aqueles anos todos.
Um salto no tempo para o início dos anos 1990, seminais para tudo o que historicamente, culturalmente vem depois. E a partir daí, nesse último terço do filme, entramos num registo diferente daquele em que estávamos, como que num sinal até formal de que os tempos mudaram realmente.
Entramos no lado mais melodrama, entramos na zona da família e na grande implosão. Enquanto no resto filme existem grandes saltos temporais, esta parte do filme passa-se no espaço de poucos dias. O que temos ali é o culminar de muita coisa.
Esta diferença representou um
desafio acrescido?
Eu sabia que queria afunilar o filme, sabia que queria vir de uma coisa grande, como o país, para depois afunilar na família, em direção ao João. Começamos na herdade e terminamos no João e eu queria muito este afunilamento.
O João é uma personagem cheia de contradições. Era assim que estava pensado este personagem desde o início?
Foi construído em cima da imperfeição que todos nós temos. Há uma coisa que me irrita muito, em argumentos e em livros: as pessoas boas, que são muito boas, e as más, que são muito más. Incomoda-me porque acho que somos feitos de tudo. O João Fernandes tinha que ser isso tudo, um monstro, mas um herói ao mesmo tempo. Profundamente imperfeito, capaz de ser bruto ou de ter um gesto de ternura. Foi nisso que trabalhei com o Albano porque acho que as personagens mais interessantes na vida têm isso tudo nelas. Acho que é isso que o torna um bocadinho maior do que a vida. Ele é tudo no mesmo, e não deixa de ser coerente consigo, curiosamente.
Sim, ele na verdade não muda.
É sempre aquilo. É dos personagens que menos mudam, e chega ao fim se saber bem o que lhe aconteceu.
À Leonor, às tantas os pais perguntam “mas agora és comunista?” e ela deixa a dúvida. Em termos históricos e do olhar que temos hoje sobre a ditadura, a revolução e todas as transformações que a seguiram, o filme acaba por não tomar partido de nenhuma das partes. Somos aliás quase que coagidos, às tantas, a um certo sentimento de empatia para com aqueles que, com o 25 de Abril, passam a ser perseguidos, através dos pais da Leonor.
Tenho essa caraterística com todos os meus personagens. Se tiver um personagem que odeio, do qual só vejo o lado mau e não compreendo minimamente, deixo de ter interesse nele. Isso vai torná-lo boneco. Não o vai tornar humano. E acredito, acredito mesmo nisto, que todos têm as suas razões. Depois terei a minha opinião sobre as razões de cada um, mas aquela pessoa que está a fazer aquela ação tem as suas razões. Gosto disto, de não ter que estar a ter um julgamento meu sobre elas enquanto realizador. Enquanto espectador, posso tirar as minhas conclusões.
De qualquer forma, neste caso em concreto, isso vem servir também a história, porque as personagens do João e da Leonor estão ali num lugar-charneira, entre um lado e o outro.
Sim, mas eu digo isto mesmo em relação a qualquer personagem, porque todos eles, desde o Leonel ao Joaquim, percebo-os a todos. E isso acho que é muito trágico no filme:_conseguimos compreendê-los a todos. É um filme que fala muito de impossibilidades. E não é que tenha prazer nisso, mas gosto de perceber a dificuldade que as nossas imperfeições enquanto humanos, todos nós, nos guiam a estas impossibiliadades. Era muito sobre isto que queria falar.
Acredita, nesse sentido, que este filme pode ajudar a, não o desculpando, oferecer uma possibilidade de um outro olhar sobre este passado. A verdade é que continuamos a julgar-nos uns aos outros com base no passado que as nossas famílias tiveram, de um lado ou do outro dessa barricada.
Exatamente. Tive muito cuidado para não pender nem para um lado nem para o outro, mesmo na montagem, e acredito que nisso o filme até está justo. Porque já pessoas de vários tipos, com vários passados sociais, de várias classes e vários estratos e espectros políticos, mais à direita ou mais à esquerda, viram o filme e ninguém se sentiu ofendido ou incomodado.
A Herdade tem, à partida, tudo para ocupar aquele espaço que tantas vezes se diz estar no cinema português vazio: o de um tipo de cinema que seja capaz de agradar à crítica e aos grandes festivais, ao mesmo tempo que tem caraterísticas que o podem tornar interessante comercialmente. Sem ideia de quantos espectadores A Herdade fará em sala, arrisco-me a dizer que é um filme com caraterísticas que, à partida, lhe permitem estar nos dois campos. Um dos desejos iniciais era o de tentar com este filme chegar a esse lugar tantas vezes apresentado como uma impossibilidade?
O cinema português está sempre nesta guerra entre o autoral e o comercial que sempre me fez muita confusão, que me faz muita confusão. As salas têm muitos lugares e esses lugares deveriam estar preenchidos. Quando fazemos cinema, estamos a fazer uma coisa para salas que têm muitos lugares, por isso o objetivo para mim é sempre que o filme chegue ao maior número de pessoas possível. No entanto, acho que um filme tem de ser e deve ser sempre extremamente singular e autoral e artístico, que é o que o torna interessante. Ou então estamos a fazer outro tipo de formato, e aí é que entramos numa lógica meramente comercial e de entretenimento. Acho que o cinema deveria cumprir essas duas funções:_conseguir chegar longe no que diz respeito ao reconhecimento quer da crítica quer dos festivais, mas também levar o maior número possível de pessoas às salas. O cinema é isso, é para chegar às pessoas, pelo menos na forma como eu o vejo. Gosto de tratar o espectador como uma pessoa inteligente.