Ser e parecer hoje nos média: uma outra face da mesma moeda


Nunca como hoje o que parece se sobrepôs mais ao que realmente é e foi, e assim é difícil contrariar a abstenção eleitoral.


O juiz Manuel Soares escreveu há dias um excelente artigo intitulado “Entre o ser e o parecer”.

Não vou aqui dissertar sobre o conteúdo de tal artigo – que, aliás, me pareceu muito esclarecedor –, mas sobre a evocação que o seu título nos deixa.

Diziam os chineses, referindo-se à sua culinária tradicional, que um prato, para ser aceitável e apresentável ao comensal, deveria obedecer a três princípios: saber bem, cheirar bem e parecer bem.

De facto, a questão de ser e parecer não é propriamente nova e tem sido glosada por várias personalidades, algumas de má memória.

Disse, por exemplo, Salazar, orientado pela sua inteligência fria e pelo seu consabido cinismo, que “em política, o que parece é”.

Este seu antigo pensamento pode aliás, hoje, justificar bem a recusa de promover um museu que tenha como motivo a sua personalidade e o seu papel na História.

Na verdade, o que de tal pensamento decorre é que o que em política não parece não é, não foi e, portanto, não merece consideração.

Mas diz mais: diz ainda que o que parece, mesmo não tendo verdadeiramente acontecido, ganha contornos de existência e que é com tal realidade – mesmo virtual – que há de contar-se em política.

Infelizmente, nos tempos mediatizados que vivemos, esta asserção da política ganhou foros de realidade inquestionável.

Nunca como hoje o que parece se sobrepôs mais ao que realmente é e foi.

Daí o uso acrítico, mas já vulgarmente assumido em política, do termo narrativa para abordar a descrição de factos ou atitudes políticas cuja relevância só se projeta publicamente não pela sua realidade ou irrealidade, mas pelo discurso interpretativo que deles se faz.

O uso da expressão narrativa para justificar, ou contrariar, a exposição da realidade que algum agente político tenta fazer – quase sempre ingloriamente – assenta, de facto, no mesmo pressuposto de que o que vale é o que parece, o que se conta, e não o que de facto aconteceu.

A narrativa da realidade é mais importante do que esta.

Daí que muitas discussões políticas – mesmo as que agora se travam em torno do processo eleitoral – se desenrolem mais em torno das expressões usadas pelos diferentes intervenientes do que em torno das realidade que elas procuraram abordar.

O sound bite é, assim, mais importante do que a realidade e é mesmo, em muitos casos, a única razão de ser de muitas das entrevistas aos responsáveis políticos abordarem mais a forma dos seus discursos do que o seu conteúdo efetivo e, menos ainda, a realidade que eles quiseram versar ou escamotear.

A realidade parece cada vez menos relevante, em termos mediáticos, e os políticos são cada vez menos confrontados com ela.

O que tem importado a muitos entrevistadores é empolar a ressonância e o sentido aparente das palavras produzidas no calor das intervenções públicas pelos responsáveis políticos e, muito menos, a realidade do país e as consequências, positivas ou negativas, que sobre ela teve a ação concreta de cada um desses responsáveis e das forças políticas que lideram.

O que tem interessado é o espetáculo e o papel desempenhado pelos “atores políticos”.

Ora, esta maneira de abordar a política prejudica a visibilidade da realidade do país, que teima em não aparecer, a não ser pela voz daqueles políticos que insistem mais em ser do que parecer e que, por isso, não concitam a atenção ou as simpatias dos média mais dedicados à produção do espetáculo do que ao esclarecimento dos cidadãos.

Assim, é difícil contrariar a abstenção.

 

Escreve à terça-feira