Há poucos sintomas mais claros da polarização causada pelo Brexit do que a visão em relação ao presidente da Câmara dos Comuns, o carismático John Bercow. O seu cargo deve ser neutro, de mera ampliação da voz do Parlamento – tendo o incumbente de renunciar a qualquer filiação partidária para o resto da vida. Contudo, Bercow terminará o seu mandato odiado pelos defensores do Brexit – que o acusam de ser parcial quanto ao assunto – e adorado pela oposição. Como presente de despedida, o presidente da Câmara dos Comuns anunciou que se demitiria a 31 de outubro, antes de quaisquer eleições antecipadas, permitindo que o seu sucessor fosse votado pelo atual Parlamento – onde o Governo de Boris Johnson não tem maioria.
“Significa que a votação [do próximo presidente da Câmara dos Comuns] será enquanto todos os deputados têm algum conhecimento dos candidatos. Isto é de longe preferível a uma disputa no início de um novo Parlamento, quando os novos deputados não estarão tão informados e poderão ser vulneráveis a qualquer influência institucional indevida”, explicou Bercow – que deixou duras críticas à decisão do primeiro-ministro de expulsar do grupo parlamentar deputados que votaram pela proibição de uma saída não negociada do Reino Unido da União Europeia.
A data escolhida por Bercow para deixar o cargo coincide com a atual data limite do Brexit, até à qual não deverá haver eleições antecipadas, uma vez que toda a oposição recusa tal cenário. Trabalhistas, nacionalistas escoceses e galeses, liberais democratas e conservadores dissidentes levantaram-se e irromperam em aplausos após o anúncio – enquanto muitos conservadores permaneceram sentados. Em particular, os chamados Brexiteers – ou apoiantes do Brexit – viram na data um sinal inequívoco da parcialidade do presidente da câmara.
“A História irá julgá-lo por este momento”, declarou o deputado conservador Peter Bone. O antigo secretário de Estado do Brexit, David Jones, afirmou ao Daily Telegraph que o objetivo de Bercow é “garantir que um Parlamento opositor do Brexit eleja o seu sucessor” – acusando o presidente da Câmara dos Comuns de “jogar com o sistema, com fez durante anos”.
Uma constituição vaga Se o principal papel do presidente da Câmara dos Comuns é ser estritamente neutral, com vista a moderar o debate sobre votos parlamentares – “ORDEM!!!”, gritou tantas vezes Bercow –, porquê tanta polémica à volta do próximo detentor do cargo? Bem, um fator é a Constituição vaga do Reino Unido, uma mistura de leis não codificadas, convenções, decisões judiciais e princípios – alguns dos quais estão escritos, outros não. Se isso gera confusão num período de normalidade democrática, num momento excecional como o que o Reino Unido vive desde 2016 – com a vitória do sim no referendo do Brexit –, a Constituição britânica pode ser interpretada das mais diferentes maneiras, com consequências muito reais para a legislação que é aprovada ou não.
Por exemplo, a noção alargada de Bercow sobre o que justifica ou não uma moção de emergência foi fundamental para acelerar a proibição de uma saída não negociada antes da suspensão do Parlamento – prolongada até dia 14 de outubro pelo primeiro-ministro. A oposição acusou Boris de tentar impedir os deputados de deliberar sobre um pedido de extensão do prazo do Brexit – que terá de ser feito até à data do Conselho Europeu, marcado para dias 17 e 18 de outubro. O presidente da Câmara dos Comuns pareceu ecoar esses receios. “Esta não é uma suspensão normal. É uma das maiores em décadas e representa um decreto executivo”, disse Bercow, pouco antes do encerramento da câmara até 14 de outubro.
Voz do poder legislativo Historicamente, o Parlamento britânico sempre serviu de contrabalanço ao poder executivo – fosse este exercido por reis ou por primeiros-ministros. Contudo, nos últimos anos, esse papel ganhou um destaque incontornável na política britânica face à incapacidade do Governo de Theresa May de conseguir aprovar o seu acordo de saída da UE ou à proibição de uma saída sem acordo pelas mãos de Boris – uma tensão que muitos apoiantes do Brexit acusam Bercow de incentivar, enquanto boa parte da oposição o saúda por não se deixar intimidar pelo Governo. “Este Parlamento é mais forte por ter sido presidente da Câmara dos Comuns”, disse o líder dos trabalhistas, Jeremy Corbyn, agradecendo a John Bercow por deixar o seu cargo “mais poderoso, não menos poderoso”.
Aliás, ainda esta semana, o conflito entre o Executivo e o Parlamento – representado na pessoa de Bercow – levou a mais uma quebra da Constituição não escrita do Reino Unido. O Partido Conservador decidiu apresentar um candidato ao círculo eleitoral de Bercow, contrariamente à convenção de os partidos não concorrerem contra o presidente da Câmara dos Comuns, para não o forçar a fazer campanha política – dado não poder participar nas discussões parlamentares. Contudo, o Governo argumentou que Bercow não estaria a ser “um árbitro politicamente imparcial e independente”, segundo Andrea Leadsom, ministra dos Negócios, Energia e Estratégia Industrial.
Leadsom acusou Bercow de “flagrante abuso” dos processos parlamentares, por permitir que o Parlamento fizesse uma votação de emergência antes da suspensão prolongada imposta por Johnson – que resultou na proibição de uma saída não acordada da UE. Para a ministra, Bercow “ignorou o direito do Governo a governar”.
“ORDEM!!!” Enquanto presidente da Câmara dos Comuns, Bercow ganhou um protagonismo incomum entre os incumbentes do cargo. Talvez tenha sido pela maneira como o processo do Brexit capturou as atenções dos média, dando um tempo de antena pouco comum ao Parlamento britânico desde 2016.
Contudo, muito antes disso, Bercow já era notado pelo seu carisma muito particular, com as suas gravatas espampanantes e o seu modo colorido de gesticular. As audiências um pouco por todo o globo deliciaram-se com os seus gritos de “ORDEM!!!”, enquanto admoestava mordazmente deputados. “Está demasiado excitado e precisa de se conter. Se precisar de tomar um medicamento, então que seja”, disse o presidente da câmara a um deputado. “Porte-se como um adulto. Se não conseguir, saia da câmara, aguentaremos sem si”, ordenou a outro.
Bercow, de 56 anos, foi eleito presidente da Câmara dos Comuns em 2009, abdicando da sua militância no Partido Conservador. Não teve o percurso dos líderes conservadores, sendo filho de um taxista do norte de Londres e tendo frequentado a Universidade de Essex – em vez de Oxford ou Cambridge, de onde vêm muitos dos seus colegas. Se a sua primeira experiência política foi em grupos de extrema-direita – algo que viria a lamentar, dizendo ter sido um “cabeça dura” – acabaria por se tornar um liberal convicto. Exemplo disso é quando defendeu os direitos dos homossexuais – numa altura em que tal era extremamente incomum entre conservadores.
Há muito que Bercow é visto como opositor do Brexit – tendo sido acusado por um deputado de ter um autocolante com o slogan “Que se lixe o Brexit”. O presidente da Câmara afirmou que o autocolante em questão estava no carro da sua mulher e retorquiu habilmente: “Tenho a certeza de que o ilustre cavalheiro não sugeriria nem por um momento que as mulheres são, de alguma forma, propriedade dos seus maridos”. Acrescentando: “Ela tem direito às opiniões dela”.