Em 1973, o realizador de O Exorcista, William Friedkin, estava consciente do diabólico trunfo que tinha na manga, e deixou claro que previa um retumbante sucesso nas bilheteiras, tendo-se gabado de ter a mão “no pulso da América”. O mais curioso é que não parecia interessado em reclamar a “aura” artística do filme – que, como sabemos, veio a tornar-se um clássico do cinema de terror -, mas vincou que não estava a tentar fazer filmes para os ver exibidos “na porra do Louvre”. E o que aconteceu? O filme que tinha tido uma rodagem bastante conturbada, com algumas pessoas ligadas aos atores e equipa técnica a morrerem, sendo o caso mais conhecido o do ator Jack McGowran, foi um êxito absoluto, destroçando o recorde estabelecido no ano anterior por O Padrinho, de Francis Ford Coppola.
A resposta do público depressa cercou o filme de uma espécie de mito sinistro, houve histeria, e multiplicavam-se os relatos de pessoas que tinham passado mal, algumas desmaiado durante a exibição do filme, e à porta de algumas salas de cinema não era invulgar haver ambulâncias de prevenção. Cedo se percebeu que estava ali o germe de uma outra forma de excitar as audiências, entre o espanto e o pavor, com Friedkin a ser saudado por ter ido mais longe na exploração da violência e da sexualidade, trabalhando no campo psicanalítico de uma forma que o punha alguns passos à frente de Fellini ou Hitchcock. A própria Academia do Cinema se viu obrigada a reconhecer o génio desta obra, e o filme recebeu 10 nomeações para os Óscares, tornando-se o primeiro do género de terror a ser considerado na categoria de Melhor Filme.
Dois anos depois, Steven Spielberg excedeu largamente o orçamento num filme que, inicialmente, nem estava interessado em realizar, e obrigou o estúdio a tomar medidas preventivas para assegurar o investimento, despejando uma soma astronómica para os valores que, em 1975, iam para a promoção dos filmes, originando uma campanha televisiva pioneira e que fez desse o verão em que todos os banhistas espiavam as águas, e até mesmo na piscina, com receio de ver surgir uma barbatana. Foi com Tubarão que entrámos na era do blockbuster moderno. E, dois anos depois, George Lucas conseguiu 11 milhões de dólares e esticou-os de forma maravilhosa para dar vida a um filme que vinha aprimorando na imaginação desde puto. E se Stars Wars bateu todos os recordes nas bilheteiras, Lucas provou uma astúcia para os negócios inigualável, ao duplicar as receitas com a venda de brinquedos, lancheiras e outros artigos de merchandising inspirados no seu devaneio galáctico.
São estes os antecedentes do regime que hoje vigora em Hollywood, mas, à entrada deste milénio, uma indústria que parecia talhada para se reinventar a cada década, parece ter perdido o rumo e grande parte do seu encanto. Hoje, a sensação generalizada de quem observa o fenómeno criticamente é de que o cinema comercial perdeu a confiança na sua inspiração, a máquina de produzir sonhos parece esclerosada, e a ganância fê-la tornar-se absolutamente avessa ao risco, afastando aqueles que poderiam trazer-lhe ideias novas e propostas realmente excitantes. Ironicamente, foram precisamente os realizadores que assinaram os primeiros blockbusters, Spielberg e Lucas, aqueles que profetizaram o desastre que aguarda a indústria do cinema. “Vai acabar por ocorrer uma implosão com três ou quatro, ou até mesmo meia dúzia de filmes com orçamentos estentóricos a espetarem-se nas bilheteiras, e é isso o que vai forçar uma mudança do paradigma”, previu Spielberg em 2013 na cerimónia em que foi inaugurado um novo edifício da USC School of Cinematic Arts. Nessa mesma sessão, Lucas concordou com o colega e amigo, e disse que serão as próprias salas de cinema a levar a cabo uma pequena revolução, investindo na experiência cinematográfica, com as exibições a parecerem-se cada vez mais com o modelo da Broadway, em que só um número seleto de filmes irá estrear, mantendo-se em sala por períodos bem mais longos. De resto, esta ideia levou Spielberg a recordar que, em 1982, o seu E.T.: O Extraterrestre se manteve nos cinemas durante um ano e quatro meses.
Numa altura em que os serviços de streaming têm uma oferta cada vez mais variada e abrangente, Hollywood conseguiu demonstrar como a insaciável demanda do lucro põe fim a qualquer ilusão que o cinema comercial norte-americano possa alimentar de ser encarado como uma forma de arte. Se no ano passado, no total, se vendeu um número record de bilhetes nas salas de cinema norte-americanas, basta olhar para o top dos filmes mais para perceber que este é constituído inteiramente por filmes de superheróis, sequelas e remakes. Aqui estão eles: Black Panther, Avengers: Infinity War, Incredibles 2, Jurassic World: Fallen Kingdom, Deadpool 2, Dr. Seuss’ The Grinch, Mission Impossible-Fallout, Antman and the Wasp, Solo: A Star Wars Story e Venom.
E como notou o crítico Daniel J. Flynn, é preciso chegar à 12.ª posição na lista para encontrar o único guião original: A Quiet Place, de John Krasinski, que foi uma animadora surpresa, servindo-se de um cenário pós-apocalíptico em que os últimos sobreviventes estão obrigados a uma existência o mais silenciosa possível para não atrair uma raça de terríficos predadores que, com uma audição prodigiosa, ameaçam levar à extinção a raça humana. E se pensarmos que o ruído constante é um dos traços que define a nossa civilização, esse filme criou uma das mais perfeitas alegorias em relação a essa forma de devastação que passa por nos tornar tão barulhentos quanto insensíveis. E, dado o sucesso que o filme alcançou, a sequela já está a caminho.
Flynn lembra que a mensagem do sucesso deste filme, ao invés de instigar os executivos de Hollywood a procurarem outro filme original, leva-os a tentar espremer até à última gota de rentabilidade aquela proposta. Nisto, o cinema é cada vez mais conservador nas suas apostas, reforçando a lógica de imitação e sequencialização dos filmes. Numa altura em que estão anunciados novos capítulos da saga The Matrix, Rambo e Top Gun, o site Den of Geek mantém uma lista atualizada das muitas produções que irão tentar trazer de volta clássicos mais ou menos recentes. Sejam remakes, sequelas ou adaptações, a impressão que dá é que o cinema abdicou de sondar o desconhecido e, incapaz de testar outras fórmulas, estagnou. Ao todo, aquele site contabiliza cerca de 120 destas produções que dão uso ao desfibrilhador na tentativa de reanimar um paciente anestesiado sobre a mesa.
No artigo que escreve no Spectator, Flynn refere que há algumas décadas esta era uma linha secundária no negócio, dando origens a filmes de série B. “Hoje, a indústria do entretenimento alimenta as audiências com os série B dando-lhes o tratamento que estava reservado aos de série A.” Para o crítico, não é apenas o “produto” que Hollywood impinge aos seus clientes que se mostra menos criativo, menos desafiante, mas é o próprio perfil dos criadores que se está a alterar. Não se espera que inventem nada de novo, mas tão só que sirvam as expectativas criadas pela campanha de marketing. “Nós vivemos do borralho do passado até mesmo quando o ridicularizamos pelas suas noções ultrapassadas, pelo que envelheceu mal e, hoje, nos parece insosso e por tudo aquilo que, desde então, caiu na categoria do politicamente incorreto”, sublinha Flynn.
O que isto nos diz é que, em certo sentido, a nossa cultura se desfez da capacidade de propor um futuro que não passe pela reapreciação do passado. Ao invés de viver, serve-se da nostalgia e da simulação para atravessar o mundo com o seu olhar que não é capaz de ver nada do que lá está, pressentir o que aí vem, mas que apenas cumula ausências. A própria ideia de progressismo está presa a uma incessante revisão das suas ações, e, no desejo de se reformar, de agir de forma sensível, recai num moralismo insuportável. Há uma perda da experiência íntima, pois tudo tem antes de ser sancionado na esfera pública.
Restam alguns realizadores que se mantém fiéis ao cinema enquanto uma arte que confronta o seu tempo e que recusam ficar reféns das fórmulas de sucesso garantido. Clint Eastwood, Martin Scorcese, P.T. Anderson, Woody Allen, Christopher Nolan e James Gray são exemplos de cineastas empenhados em fazer filmes que, ao serem exibidos numa sala de cinema, chamam o público a um dos últimos templos onde parece ser possível uma verdadeira experimentação coletiva. Não se trata de reunir hordas, nem de excitá-las com tudo aquilo que as identifica como massa, mas de atrair indivíduos a esta forma de culto em aberto, sem dogmas nem certezas, e que ainda se desafia e questiona, perseguindo o inaudito.