Georg Trakl. A caixa de música que toca depois do fim do mundo

Georg Trakl. A caixa de música que toca depois do fim do mundo


Com humilde afinco, e o trabalho de tantas revisitações ao longo de décadas, António de Castro Caeiro assina uma tradução que é mais fiel à estranheza do poeta cuja sensibilidade o matou.


Se Rimbaud foi um genial estafermo, servindo-se do sagrado ímpeto da adolescência para instaurar uma desordem fabulosa, e que, de ora em diante, não aceitaria mais tréguas, ninguém se aplicou de forma mais cirúrgica na contenção desse rasgo delinquente ao registo lírico do que Georg Trakl. Nenhum dos tantos poetas que quiseram segui-lo, atravessando o inferno para, desde aí, verem o mundo através das suas chamas, aperfeiçoou essa lição a um lugar de tumulto íntimo. E um poeta destes visita-nos com uma veemência extraordinária hoje, num momento em que, talvez como nunca antes, a poesia parece esvaziada de propósito e de obsessão. Mistura-se, orgulha-se da sua vulgaridade. Ao mesmo tempo, parece de tal modo confiante nos seus poderes, a um tal ponto convencida de que não lhe falta o que dizer, que se tornou mais outro discurso em bicos dos pés. 

A urgência foi perdida a favor da mera ansiedade, e a vulnerabilidade só lhe interessa como estratégia confessional. Marcha em pelotão, sem grande aprumo mas não menos ruidosa, e vive a coberto de uma espécie de inimputabilidade, cedendo ao relambório, mais ou menos afectado, enquanto a invenção verbal, as virtudes da sua música calada se ficam pelos serviços mínimos. Trata-se, por isso, simplesmente de ir afadigando a língua, servindo-se de um código expressivo demasiado confortável com os seus limites.

Por isso é tanto mais estimulante quando, desenquadrado de tudo o que já se adivinha, somos levados para outro plano poético, outro peso e razão face a um quadro não menos desesperado que o nosso. A propósito de Trakl, João Barrento fala-nos de um processo de reverberação, de poemas em que “o seu corpo ‘empestado’ é o corpo do século, do Império, do mundo, a sua melancolia embebe tudo, dos mitos das origens à epifania escatológica”. Se hoje, de novo, se arma diante de nós um horizonte escabroso e que, ao invés de nos espicaçar, nos deprime, um poeta como este fala directamente a essa consciência ameaçada, esse “fim de estirpe e decadência”. Mas o terror tem as suas dimensões inesperadas, uma beleza própria e que não deixa de cultivar a esperança mesmo se não há muito que possamos fazer para contrariar o nosso destino.

Além de o ter traduzido, Barrento soube resumir de forma brilhante as tantas leituras críticas que esta obra tem merecido no prefácio à antologia Outono Transfigurado (1992), notando que Trakl “é, neste século, o primeiro momento de um minimalismo poético que vive de repetições e variações de palavras, de imagens, de sinestesias”. E acrescenta que a “poeticidade minimalista de Trakl vive da iteração, até ao excesso quase insuportável, da monocromia (negro-cinzento) com que se compõe esse mosaico da morte”.

Autor decisivo para a formação do expressionismo, este poeta nascido em Salzburgo, em 1887, no ambiente de “apocalipse alegre” que se vivia no Império Austro-Húngaro, acabou por transcender um mero regime estético, criando uma representação à escala íntima da tragédia e da angústia desfiguradoras que expuseram a humanidade à pior das luzes. E há nos seus poemas um vazio pulsante que chama a si o mundo de acordo com uma clareza teatral, como se fosse uma peça representada de forma fantasmagórica pela eternidade fora, mas no palco de uma extravagante caixa de música em que bailam figuras ao ritmo de uma melodia tão doce quanto sinistra.

Numa edição da Abysmo, sóbria e justa, Poemas chegou em abril como uma flor negra e discreta contrastando com a primavera irritante que se impôs nas livrarias. Este volume é o primeiro das duas recolhas que marcam o período de maturidade poética de Trakl, e foi a única preparada por ele, já que Sebastian im Traum (1915) só apareceu postumamente. Numa obra exígua e fulgurante, o regime poético é marcado por uma “depuração e redução extremas”, em que o poeta vai trabalhando variações, parecendo desenterrar uma canção de embalar apavorante mas que envelhece docemente connosco e torna a infância esse lugar onde viremos a morrer. “Os suspiros dos amantes sopram nos ramos/ E lá apodrece a mãe com a sua criança./ Irreal parece a dança dos seres vivos/ E, admiravelmente, espalha-se no vento nocturno.” 

Em cada página ressaltam cintilações negras, os detalhes assumem uma força quimérica, cada respiro está preso a uma beleza que se extenuou e fala agora como num sussurro fatal. Amargamente, cada visão encontra o encanto e resiste-lhe, sugere-nos estórias, mas também o poeta resiste a envolver-se demasiado, e abandona as figuras como se nada fossem senão espectros. “Em silêncio, doentes sentam-se ao sol. (…) As aves contam-te lendas distantes (…) De par em par, abertos estão os jazigos/ E bem pintados a raios de sol.”

Quanto à tradução, só nos é possível avaliá-la por comparação com as de Barrento e as de Paulo Quintela (Poemas, ed. O Oiro do Dia, 1981), além de outras em inglês ou espanhol. Entre perdas e ganhos, a tradução de um poeta como Trakl parece-se muito a uma invocação, e a leitura portuguesa é sempre uma sombra, mesmo quando consegue erguer-se do chão. Isto deve-se ao tão estrito recreio semântico deste obsessivo poeta em que, como vinca Barrento, “o termo mais personalizado, a referência mais íntima (…) alargam-se em círculos semânticos até à dimensão histórica da decadência do Ocidente, frequentemente até à dimensão cósmica”. 

No demorado exercício de tradução deste volume, António de Castro Caeiro apresenta-nos o resultado de uma longa convivência. Porque, como notou o crítico literário Christopher Benfey, a repetida leitura destes poemas vê as palavras descolarem do sentido inicial, movimentando-se, abrangendo outros significados, “como uma peça de música nas suas múltiplas performances”. Cada verso é como um gesto inflectindo todos os anteriores, há aqui uma fluência ardente, um cadência insone e inesgotável em que nada se encerra, antes aguarda os seus ecos, “propagando-se em significações inquietantes até ao infinito”.

Passaram-se 32 anos desde que Caeiro descobriu esta obra, e antes já Paulo Quintela e João Barrento nos tinham dado interpretações imprescindíveis. A escavação de Caeiro é, tendencialmente, mais cortante, mais vil, a imagem sobreleva a entoação melódica, que, à sua maneira, tanto Quintela como Barrento recriaram alargando o horizonte que a nossa poesia desbravava. 

Mais lírico o primeiro, mais elegíaco o segundo, inventaram o expressionismo que nos faltou, e fizeram-no exigindo algo mais ao ouvido desta língua. Já as versões de Caeiro são mais fiéis à estranheza, a um processo em que a língua está ainda adaptada à mastigação, e mais do que uma frase limpa e sonora, sentimos o gosto da sua resistência, os movimentos de fascínio e repúdio que provoca um corpo ao romper por um organismo causando-lhe mossa. Se nem sempre nos soam, se alguns poemas parecem mais abandonados do que selados, as imagens estão naquele ponto fragoroso do seu achamento: cruas, pulsantes, desordeiras, quase infames. O poeta capta um drama anterior a qualquer moral. E está, na verdade, mais próximo de um pintor, recusando-se a ficar entre os homens quando começam com as suas sórdidas ficções. A realidade é como uma matéria que ao mesmo tempo que se entranha também se nos esquiva, e esta é uma tradução fiel àquele sentido de impotência, à imperfeição prometedora de um poema quando há margem ainda para ir mais longe. Como dizia Trakl numa carta ao amigo Erhard Buschbeck: “Ficamo-nos sempre pelas palavras, ou melhor, por esta terrível impotência.” O que o poeta quis foi ir até ao fim. Às tantas, quando deu por si, a sensação era de que tinha perdido o próprio mundo.

Nesta poesia, em qualquer direcção está-se perdido, a treva torna-se um elemento, e as coisas que envolve agitam-se à nossa passagem, como um prenúncio desolador. Assim, esta poesia cria esses reflexos de um trilho que se percorre interiormente. “Ergue-se uma cruz na vinha selvagem. (…) Devagar abre-se uma cerca podre. (…) O mendigo, ali na pedra antiga,/ Parece ter morrido em oração” (do poema “Canção Espiritual”). Nunca mais o negro foi tão expressivo, se mostrou tão claro como se o som das asas de uma mosca produzissem, face a um ouvido mais apurado, um enlevo musical, uma sensibilidade que lhe afinasse os nervos. “Sombras azuladas. Oh!, os vossos olhos escuros,/ Que longamente fixam, ao passar./ Acordes suaves de guitarra acompanhando o Outono,/ No jardim, dissolvido em lixívia castanha.”

Cada poema conta com algum derrube, a calma de um olhar com a ingenuidade sem futuro de velhas crianças. Vemos as pausas dolorentas de figuras que tresandam ao desgaste, à labuta diária num país pobre e, se visto à distância, tenebrosamente belo. Um sofrimento que se reconhece desses sonhos em que brincamos visitando os pesadelos dos outros. “E na sala baixa, enegrecida pelo fumo,/ Sentam-se os criados e as criadas à refeição;/Servem o vinho e partem o pão.// No silêncio profundo do meio-dia,/ Uma escassa palavra, por vezes, cai. (…) As criadas estão à escuta, tontas e caladas,/ E o sangue martela as suas frontes.// E por vezes cruzam-se olhares cobiçosos,/ Quando um odor animal enche todo o quarto./ Monocórdico, um criado faz as suas orações,/ E, debaixo da porta, um galo canta.” O poema chama-se “Os camponeses”.

É como se uma narrativa fosse destruída pela força das suas impressões. Se sentidas à lupa, há nelas uma espécie de escândalo, uma vida microscópica que fervilha, mas este é o olhar de um anjo desenterrado – um “anjo branco e conspurcado”, na expressão de Barrento –, como se entre um Deus irado e os homens, planos terríveis de um lado e os pequenos consolos do outro, como se a queda fosse uma forma de romper com todos os vínculos, ganhando balanço para a morte, enquanto se delicia saboreando “vinho novo e nozes”. “Delicia vacilar bêbado na floresta ao crepúsculo.” De resto, no esplendor negro que caracteriza a poesia de Trakl, vendo os homens e as mulheres na pequena morte que prepara o fim, ele vê-os espalhar flores azuis e encarnadas sobre as suas sepulturas, e diz que “agem como pobres marionetas perante a morte.”

A par do tão sensível ângulo a partir do qual espreitava o mundo, Trakl debatia-se com uma fragilidade psíquica para a qual a ávida ingestão de todo o tipo de estupefacientes contribuíra decisivamente. Desde os 15 anos que, juntamente com a irmã Grete, começou a servir-se de todo o tipo de drogas a que conseguia deitar mão para logo traduzir os efeitos no seu processo criativo. Seguindo a lição de Rimbaud, nunca se poupou e perseguiu todos os excessos na ânsia de anotar o inexprimível, fixar vertigens, correr ao lado das mais alucinadas composições, para que nas suas palavras estivesse o resíduo e o tremor dessas dimensões que se oferecem em raros haustos. Pagou-o caro. O impetuoso satirista Karl Kraus, de quem foi próximo, não estranhou o seu suicídio com apenas 27 anos, e disse mesmo que lhe parecia “incompreensível que Georg Trakl pudesse manter-se vivo, fosse de que modo fosse”. Com a morte do pai, em 1910, e a instabilidade económica que se seguiu após a dissolução da casa comercial, foi forçado a buscar um meio de sustento. Assim se impôs a chance de se integrar como farmacêutico na carreira militar. Nada podia, no entanto, resguardá-lo das crises depressivas, e progressivamente foi-se tornando cada vez mais avesso à disciplina profissional, renunciando a posições na função pública. Com os anos, terá começado a ser sacudido por surtos cada vez mais debilitantes. O seu comportamento era instável, e não só a grande cidade lhe parecia demasiado hostil, mas era encarado com suspeita nos círculos culturais de Viena, visto como uma personagem excêntrica numa deriva autodestrutiva. De resto, também a extrema afeição que o unia à irmã era motivo de censura, sendo tomada como abjecta e imoral. Tinham já havido outras tentativas falhadas de pôr fim à vida. A Guerra ajudou, dilacerando o que ainda lhe restava de inocência. Foi mobilizado, em Agosto de 1914, com destino à Galícia (Polónia), e atingiu o fundo do poço após ter assistido ao sacrifício absurdo dos rapazes e escutado “o lamento selvagem/ das suas bocas despedaçadas.” Terá chegado a encostar um revólver à têmpora, tendo sido impedido de apertar o gatilho pelos outros soldados que estavam com ele. Internado num hospital militar em Cracóvia, depois de receber a visita de Ludwig von Flicker, ainda lhe escreveu uma última carta em que lhe diz que a tristeza que sente é tanta que não há volta a dar. “Sinto-me quase já além do mundo.” Assim, soube fazer de uma dose fatal de cocaína o passaporte de que precisava.