Lisboa: tão bonita, tão suja e tão abandalhada


É fundamental evitar a sistemática degradação da cidade. E é essencial corrigir e repensar a estratégia global de Lisboa. Se a EMEL reboca carros e multa a granel, porque não remove trotinetas e bicicletas do meio da rua? É o negócio, estúpido!


Dificilmente se encontra no mundo uma cidade capital nascida num enquadramento natural tão bonito como Lisboa. Não vale a pena entrar em descrições mais ou menos poéticas, porque Lisboa é, indiscutivelmente, uma cidade fabulosa. Mas quem a conhece e a ama tem de ficar arrepiado com o estado lamentável de degradação em curso. É verdade que foram feitas obras que embelezaram certas zonas, que melhoraram os passeios e que permitiram uma circulação diferente e modernizada. A reconstrução da Avenida da República foi positiva, assim como a de toda a zona ribeirinha entre Santa Apolónia e o Cais do Sodré. Mas não chega. Quando estávamos em crise, sem movida e sítios a armar ao pingarelho, Lisboa era mais genuína. E tinha ainda lisboetas. Foram as suas gentes e os seus recantos populares que a projetaram. Agora, a sua exploração excessiva está a modificá-la negativamente. A modernidade da Expo 98 foi visionária e tem a assinatura de Cavaco Silva, mas até isso já está estragado.

Reconhecendo muitos méritos reconstrutivos, há, porém, que olhar para o outro lado da questão: a qualidade de vida urbana. A cidade está suja, cheia de lixo, de beatas, de porcaria deitada para todos os cantos em qualquer das suas zonas, seja turística, residencial ou popular. Multiplicam-se atentados arquitetónicos. Expulsam-se os seus habitantes. Encerram comércios, restaurantes e tascos tradicionais devido à exigência de rendas exorbitantes, a favor de uma especulação imobiliária que está cheia de cumplicidades oficiais.

A descaracterização da cidade prossegue impiedosamente. Surgem ofertas gastronómicas de todo o mundo. A maioria delas não faturam nada e não têm qualidade. Já os restaurantes onde se serve comida portuguesa a preços abordáveis estão a abarrotar de nacionais e estrangeiros. Ali há favas com entrecosto. Acolá há feijoada. Além, um bacalhau que não é à Brás nem de peixelim ou escamudo. Os forasteiros que pernoitam pagam uma taxa turística diária que deveria servir para manter a cidade limpa e digna, o que não acontece. Sacos do lixo esventrados amontoam-se por todo o lado. É inaceitável, por exemplo, que na zona de Belém, o Museu de Arte Popular continue fechado e cercado de lixo, que haja por ali parques de autocaravanas sem condições, que os relvados estejam secos, que o túnel de ligação do Padrão dos Descobrimentos ao CCB esteja um nojo e que a passagem de peões feita à frente do novo Museu dos Coches esteja por acabar há quatro anos.

Há lojas onde os empregados nem português falam, o que deveria ser pura e simplesmente proibido. Temos galos de Barcelos feitos na Índia, na China e no Vietname. Em certos bairros, os presentes dos canídeos não permitem distrações para quem ande a pé. Os passeios estão encardidos, as ruas destroem automóveis resistentes, as trotinetas, bicicletas, tuk-tuks, ubers e quejandos circulam de qualquer maneira, transformando os taxistas em condutores ordeiros. Os esbirros da EMEL e a Polícia Municipal perseguem os condutores normais, mas não fazem nada às trotinetas abandonadas de qualquer maneira, até no meio das vias automóveis. Afinal, porque não as levam para um parque, para as empresas irem lá recuperá-las, pagando multas? É o negócio, estúpido! Quem permite essa diferença entre um cidadão e interesses que fazem o que querem? O que está na génese desta bandalheira?

A câmara municipal não se priva de taxas e taxinhas, mas o serviço que presta é lamentável. A água, esse bem essencial, é desperdiçada a rodos. O executivo faz o que quer e sobra-lhe tempo. Não há nota de as diversas oposições atuarem politicamente e apresentarem alternativas. Nascem monstros na Fontes Pereira de Melo, em Alcântara e, amanhã, junto à Almirante Reis. Até o facto de Lisboa ser um porto de mercadorias (foi por isso que cresceu) é hoje discutido e atacado. Quem não queria o porto levou com um hospital dez vezes maior!

Multiplicam-se hotéis e ofertas de alojamento. Porém, é preciso ter cuidado. Porque se um alojamento local passa amanhã para arrendamento urbano, os hotéis, em caso de crise, abrem falência. E começa a haver excesso de oferta. Foi o que aconteceu, depois da recessão de 2008, com muitas unidades. É bom e bonito receber os grandes navios de cruzeiro internacionais. São gigantes fantásticos, mas também um fator de poluição enorme. Há que ver os seus efeitos perversos e comprovados no ambiente da cidade. Veneza já os limita. Nós acabámos de construir um terminal gigante. Estamos bem ou em contrapé?

Para que Lisboa evolua positivamente, para que os seus habitantes continuem a gostar dela, para que possam vir muitos visitantes e residentes estrangeiros confortavelmente e para que o turismo não passe a ter uma publicidade negativa, é preciso fazer alguma coisa. Com o dinheiro que a câmara cobra e tem, como é possível que Fernando Medina não consiga apresentar uma cidade minimamente cuidada e digna? Há que melhorar muitos aspetos e investir como deve ser, com um plano estratégico bem elaborado. De outro modo, a galinha dos ovos de ouro morre. Perdem os lisboetas e todos os portugueses. Há que fazer alguma coisa, e depressa. Há uma geração de empresários e de quadros que dinamizaram a cidade e Portugal. Construíram uma nova realidade, com novos negócios e uma nova visão. Há muitas cidades turísticas que estão a ser vítimas do seu próprio sucesso e desenvolvimento anárquico e ganancioso. Estão a reagir tardiamente, com danos muito significativos. Em Lisboa, ainda há tempo para corrigir a situação. Mas será que há vontade, capacidade e coragem política?

 

Escreve à quarta-feira