“Todos os anos continuamos a digitalizar filmes, e todos os anos nos continuam a chegar novos filmes, que também é preciso guardar.” Tiago Baptista, diretor do ANIM, o Arquivo Nacional da Imagem em Movimento, da Cinemateca Portuguesa, foi direto aos números, para deixar clara a urgência de um reforço do investimento no processo de digitalização do arquivo da Cinemateca: “Existem [no arquivo] mais de mil longas-metragens filmadas em película e em vídeo e atualmente, com os recursos que lhe foram dados, a Cinemateca tem capacidade para digitalizar 10 a 12 filmes por ano. Acho que todos sao capazes de fazer contas de divisão para perceber quantas décadas seriam necessárias.” Pelo menos oito. Ao ritmo atual, seriam necessários entre 80 a 100 anos para completar o processo de digitalização desse arquivo.
A Tiago Baptista, juntaram-se Luís Urbano (O Som e a Fúria) e o realizador João Pedro Rodrigues numa conversa em que nesta terça-feira, em Vila do Conde, integrada na programação do 27.º Curtas, e assinalando os 20 anos da Agência da Curta Metragem, se debateu a necessidade urgente da criação de uma política de digitalização do cinema português.
No ANIM, paralelamente ao lento processo de digitalização do arquivo da Cinemateca, continua a ser desenvolvido um outro de conservação das cópias em película. “É cada vez mais difícil projetar cópias de arquivo em película. Uma cópia de película em arquivo não é uma [simples] cópia de película, tem um estatuto diferente. Na Cinemateca, em Lisboa, é possível ver-se uma copia da ‘Canção de Lisboa’ em 35mm, mas isso não quer dizer que não deva ser possível ver noutro ponto do país uma cópia digital desse mesmo filme.”
E, segundo explicou Tiago Baptista, o critério tem sido o de “fazer um pouco de tudo todos os anos”, com atenção especial para “alguns conjuntos de filmes em relação aos quais a Cinemateca tem uma responsabilidade acrescida, cujos direitos a Cinemateca detém, como é o caso dos filmes do Paulo Rocha”. O diretor do ANIM sublinhou, contudo, que gostaria que a decisão das obras a restaurar a casa ano pudesse ser “partilhada e alargada a comités de seleção internos e externos”, à semelhança do que é a prática noutros países”.
Para Luís Urbano, que sublinhou que nem as produtoras nem a própria Cinemateca, com os meios de que dispõe atualmente, têm a capacidade de levar a cabo essa tarefa no que respeita aos seus arquivos, afirmou tratar-se de “uma questão política”. E acrescentou: “O ANIM, segundo sei, é dos poucos arquivos que tem capacidade para realizar esta dupla tarefa: a de preservação e restauro [da película] e a digitalização. Teria capacidade até para prestar serviços a arquivos de outros países se lhe fossem dados o pessoal e os meios necessários.” Mais adiante, o produtor de filmes como “Tabu” e “As Mil e Uma Noites”, de Miguel Gomes, ou “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, sublinharia ainda que “o cinema, seja ele qual for, tem uma componente de património” e que nesse sentido “é uma obrigação do Estado preservá-lo”.
Para o produtor que levou recentemente a cabo a digitalização de "A Cara Que Mereces" (2004), de Miguel Gomes, é incompreensível que o funcionamento da estrutura do Instituto do Cinema e do Audiovisual, por exemplo, seja financiado pelo memo envelope que a produção de cinema. “É dinheiro que não sai dos impostos, não vem do Orçamento do Estado, vem de taxas pagas pelas operadoras. Não faz sentido que os custos de estrutura do ICA estejam a ser financiados por esse envelope, deveriam sim ser financiados pelo Orçamento do Estado, para que esses recursos pudessem ser libertados para a recuperação de títulos e a sua entrada no mercado de distribuição.” E acrescentou: “É preciso colocar isto no topo das prioridades, com opções de financiamento complementares, e criar uma ligação entre produtoras e o ANIM, um papel que o ICA pode muito bem desempenhar, com, por exemplo, o relançamento de títulos.”
João Pedro Rodrigues alertou para a dificuldade de circulação dos filmes que continuam por digitalizar. E deu o exemplo da obra de António Reis e Margarida Cordeiro: “Há muita gente que ouve falar dos filmes mas que nunca os viu, mesmo cá. Se o cinema português não existiria se não fosse o Estado [através dos apoios do ICA], tem de haver também este financiamento.”
Segundo Tiago Baptista, desde que recentemente foi feita a digitalização de “Trás-os-Montes”, a longa-metragem inaugural dessa dupla de realizadores, a cópia tem passado mais tempo a viajar, para ser projetada, do que no arquivo. “Depois de digitalizados, os filmes realmente têm circulado bastante. Tanto em cópias DCP [para projeção em sala] como em edições de DVD. Para os filmes etnográficos da Margot Dias [editados em DVD depois de digitalizados no ANIM] foi preciso fazer uma segunda edição.”
No mesmo sentido interveio, a fechar a conversa, Nuno Rodrigues, da Agência da Curta Metragem e codiretor do festival que se prolonga até domingo, em Vila do Conde. “O cinema é uma arte recente e provavelmente por isso não é respeitado da mesma forma que outras. Se estas políticas não forem implementadas, muitos destes filmes correm o risco de desaparecer”, afirmou. “Na pintura, uma arte com séculos de História, muitos dos nomes [hoje aclamados] apareceram na história 100, 200 anos depois. Daqui a 100 ou 200 anos, talvez outros realizadores [aos quais não tem sido prestada muita atenção] serão também vistos de outra forma.”
E, num balanço dos 20 anos da Agência da Curta Metragem, notou as vantagens ao nível de circulação do material digitalizado, face aos que existem apenas em película: em 20 anos, cerca de 2 milhões e meio de espectadores assistiram já, por todo o mundo, aos filmes que integram o património da Agência da Curta Metragem.