Carregar uma scooter ao ombro prédio acima, pelas escadas – vários lanços de escadas – não será tarefa para um ser deste mundo, sobretudo em vestido de lantejoulas. Mas é uma “mulher forte” Diana. Aquela Diana com que Diogo Costa Amarante se cruzou, foi cruzando, todos os dias, no ano em que, depois do Urso de Ouro em Berlim com Cidade Pequena, se mudou para o Porto, para a escrita da sua primeira longa-metragem. Filme que não viu ainda a luz do dia mas no qual decidiu contar com aquela mulher que depressa começou a ver como uma “santa padroeira dos noctívagos”.
Aí, no argumento que não foi ainda rodado para aquela que será a sua primeira longa, pensou-a como uma personagem entre outras. Mas não chegava – até porque esta história é um pouco a sua, naquela sua chegada ao bairro da Fontinha, no Porto. Como é sua aquela scooter (a que Diana carrega ao ombro), que alguém o aconselhou um dia a estacionar perto da esquina em que Diana passava as noites. “Dei por mim a, durante um ano, todas as noites estacionar a mota ao lado dela. E havia realmente uma sensação de proteção. O mais bonito para mim nesta história foi que, ao final desse ano, ganhei coragem e fui falar com ela: ‘Escrevi, na verdade, dois filmes em que de alguma forma pensei em ti’.”
Essa longa-metragem que estava a escrever, mais uma curta: O Verde Jardim, que acaba de ter a sua estreia mundial no 27.º Curtas Vila do Conde, que termina no próximo domingo. É o regresso do realizador ao festival em que há três anos estreou o filme com que, em fevereiro seguinte, venceria o Urso de Ouro na competição de curtas do Festival de Cinema de Berlim.
Reconhecido, logo de início, um registo de narração semelhante àquele de Cidade Pequena, filme montado numa sucessão de quadros, O Verde do Jardim irá já bem mais além disso: com uma narrativa in media res, mais complexa do que habitualmente se observa no formato curto; e, contrariando o registo sobretudo contemplativo do filme anterior, rico diálogos ainda. A história é a de um motociclista (ou agente imobiliário, como se quiser) que, socorrido por Diana depois de um acidente, constrói com ela, uma mulher trans que num primeiro momento ignorou, uma improvável relação de amizade.
“O filme é uma carta minha para ela, um retrato que quis fazer.” A partir daquela primeira conversa, a que se seguiram outras, até ao dia em que estava ela, diante da câmara, ao lado daquele seu alter-ego interpretado por João Castro, Diogo Costa Amarante acabou por acrescentar novas cenas ao argumento. “É importante também decorar a casa com elementos que sejam familiares àquela pessoa, para que ela própria, quando se vir no filme, se reconheça ali”, nota o realizador em conversa com o i, em Vila do Conde. “Mesmo que seja uma ficção, mesmo que haja coisas que estão longe de ser realistas, até porque acho que o realismo é uma construção.”
Como aquela bola de espelhos pendurada à entrada do prédio em que Diana observa a rua, em pé. “Para mim este exagero é, na verdade, uma aproximação ao real. O cinema tem esta coisa magnífica de nos dar a liberdade de, nesse exagero, na falsidade, na fricção, misturar o banal com o extraordinário – o extraordinário como forma de falar de coisas para mim estão mais próximas do real que sinto e percebo do que uma espécie de ditadura realista que é mesmo determinada por coisas exteriores a nós, às quais vamos sucumbindo.”
De volta a Diana, “uma figura com quem toda a gente de alguma forma já se cruzou no Porto, uma espécie de estátua humana que já toda a gente conhece”, e à forma como em O Verde Jardim é transformada em personagem de ficção – para a “história mais bonita” que Diogo Costa Amarante diz já ter ouvido “Quando a Diana aceitou fazer o filme, disse-me ‘ok, mas não te esqueças que sou uma mulher casada e que é importante que haja um respeito por aquilo que eu sou e pela minha família’. Fiquei imediatamente curioso, perguntei-lhe como é que aconteceu e ela contou-me a história de como conheceu o marido: foi um tipo que passou ali numa noite, que andava sempre a passar lá, a olhar, até que um dia ela lhe fez ‘qssqss’, uma coisa que ela faz habitualmente, e ele levantou-lhe o dedo. E ela diz: ‘Percebi logo que ia casar com ele. Levantou-me o dedo, mas eu fui lá, dei-lhe um beijo, e passado uns dias tínhamos um anel.’ Estão casados até hoje.”
Uma história que está, com outra forma, presente em O Verde do Jardim: “Aquela cena do estranho que passa por ela à noite é inspirada nesta história, que achei profundamente comovente. Para mim, dos gestos mais belos de amor, uma espécie de evidência.”
Logo depois, esse mesmo “estranho” será o rosto a explicar a comoção de Diana, quando lhe falha tudo perante uma plateia de gente que a vai ver cantar. Mas não estará tudo visto aí. De Luís Miguel Cintra não teremos direito à voz apenas naquele início em que Diana subiu um escadote, em direção a uma luz.
Será mais adiante ele a entrar porta adentro de um apartamento vazio, às tantas, para oferecer ao personagem – ao espetador, na verdade – o mais alto momento de clarividência destes 27 minutos. “Para mim transcende o fator de ser ‘o Luís Miguel Cintra’, tem mesmo a ver com já nos conhecermos de antes e eu ter uma empatia muito grande com ele. Tento sempre filmar pessoas que me inspiram muita ternura e como tenho uma ternura muito especial pelo Luís Miguel Cintra, achei que devia ser mesmo ele a fazer aquele papel” explica o realizador. “E para mim é muito importante: funciona quase como uma projeção, até do próprio protagonista, de alguém mais velho que lhe vem dizer uma coisa que para mim é muito importante – e que é uma frase que caberia no Cintra, pelas conversas que já tivemos. Tinha de ser ele a dizê-la, porque acredita nela.”
É a cena que dará o título ao filme (e à produtora criada recentemente por Diogo Costa Amarante): “Aproveitei para vir ao jardim regar as plantas?” Qual jardim? O jardim em que pode transformar-se uma varanda: “A minha mulher adorava plantas. Ficava sempre muito espantada por elas fazerem tudo para subir e chegar à luz – e conseguirem.”