“Direita, volver!”, ordenou o capitão


O luso-checo soldado Chevaique, algo sonso mas muito ledor, lembrava-se bem de o seu bisavô confessar: “Os poucos dias que passei num asilo de doidos foram os mais belos da minha vida”.


Numa recente e delirante “ordem de serviço” catastroficamente intitulada “O nosso país a afundar”, o capitão Gonçalves, agudíssimo “observador”, indignou-se ao ver na capa da revista Time o político lusitano António Guterres, outrora “nosso primeiro” e agora, imagine-se, secretário-geral da ONU! Ordenou, por isso, que se apresentasse de imediato o garboso sargento Calisto Tavares e mandou-o ir apalpar terreno entre os soldados da sua companhia para captar o pensar deles sobre a nefanda capa – na qual devia estar ele, o heróico capitão Gonçalves, e não o outrora “nosso primeiro”. Mais disse ao sargento Tavares que inquirisse os soldados – com vista a dar resposta a um sagaz dilema do general Riço de Carvalho – sobre se porventura eles achariam “Portugal Pacífico ou Portugal Passivo?”, isto é, ou uma coisa ou outra. 

O sargento Tavares lamentou não haver verba para uma sondagem focada em toda a companhia e perguntou se bastaria interrogar só um pelotão, com 38 soldados rasos. “Nem isso, seu androide!”, retorquiu, airado, o hermínio capitão Gonçalves. “Basta interrogar só um deles, ao calhas, tirado à sorte!” E, se assim o ouviu, melhor o fez o sargento Tavares, calhando-lhe, numa tiragem à sorte, nada menos do que o soldado “pronto” Matias Chevaique, cidadão luso só de três costados, dado o quarto ser de origem checa, coisa dum bisavô chamado Chveik, cuja história mirabolante e heróica foi narrada, por escrito, em obra-prima hilariante, por um tal Jaroslav Hasek, falecido na miséria e que o Diabo tem, dado que Deus não quis nada com ele.

O luso-checo soldado Chevaique, algo sonso mas muito ledor, lembrava-se bem de o seu bisavô confessar: “Os poucos dias que passei num asilo de doidos foram os mais belos da minha vida”. E de descrever o asilo: “É uma casa onde se pode passear todo nu, uivar como um chacal, ser furioso à vontade e morder até fartar, e em tudo o que se quiser”. Melhor ainda (grande era a perspicácia ideológica!): “Há lá dentro uma tal liberdade que os socialistas nunca ousariam sonhar nada de mais belo…” Ora, estas memórias checas, do tempo da Grande Guerra, estavam muito mais entranhadas no bestunto do nosso Chevaique lusitano do que os grandes feitos do soldado Milhões nessa mesma guerra enorme. Que sonso! E que azar o do intrépido sargento Tavares ter-lhe calhado em sorte um espécime tão raro para interrogar! Interrogatório esse que começou logo bastante mal quando o astuto sargento indagou Chevaique sobre o seu pensar acerca da pífia capa da Time, tendo ele respondido assim:

“Declaro obedientemente, meu sargento, que é proibido aos soldados pensar. Isso mesmo nos disse o coronel Ribeiro de Souselas, do regimento onde estive em Braga: ‘O soldado não deve pensar. O seu superior é que pensa por ele. Quando um soldado se põe a pensar, não é um soldado, é uma espécie de civil badalhoco’. Por isso é que não penso mesmo nada, meu sargento, sobre essa capa da tal revista…”

Aqui, o sargento Tavares talhou cerce: “Tu estás a gozar comigo ou quê? Atreves-te a não responder àquilo que te pergunto? Olha que se me queixo de ti ao nosso capitão Gonçalves, o mais certo é apanhares com prisão disciplinar agravada!”

“Declaro obedientemente, meu sargento”, replicou Chevaique, “que também me lembro muito bem do que o nosso coronel Ribeiro de Souselas nos dizia sempre: ‘A disciplina, seus brutos, é necessária, pois sem ela vocês andariam a trepar às árvores como os macacos. Ora, o serviço militar faz de vocês, caterva de idiotas, membros da sociedade humana’. E olhe que é verdade, meu sargento! Imagine um parque, como por exemplo o Eduardo vii, e avistar, no topo de cada uma das árvores, um soldado sem disciplina pendurado como um macaco!? Esta propensão causa-me sempre um grande pavor! É por isso, meu sargento, que não penso nem sou macaco”.

“O que tu és é um grande macacão, um sonso, um simulador!”, berrou, fora de si, o sargento Tavares. “Ai de ti se não me disseres se achas ‘Portugal Pacífico ou Portugal Passivo’? Esborracho-te o nariz, o bestunto, o alto da ideia, meu cabrão!” Ao que o soldado Matias Chevaique, sorrindo como um bem-aventurado, respondeu:

“Declaro obedientemente, meu sargento, que sou cabrão, embora não seja casado. E tanto acho ‘Portugal Pacífico’ como ‘Portugal Passivo’, assim como eu, que também sou pacífico e passivo, meu sargento! Na tropa, sou sempre as duas coisas”.

Desalentado pela sua fracassada tentativa de pastorear rebanhos militares ao sair-lhe na rifa uma ovelha negra na sua indagação sobre a funesta capa da revista Time e acerca do dilema do general Carvalho, o sargento Tavares foi abrir-se com o capitão Gonçalves, mantendo ambos o entusiasmante diálogo que a seguir reproduzo:

“Meu capitão, declaro obedientemente que tentei extorquir do soldado Chevaique, que tem três costados portugueses e um checo, o pensar dele sobre a infame capa da Time e o sagaz dilema do general Carvalho. Mas em vão. Chevaique refugiou-se num dogma que o nosso coronel Ribeiro de Souselas lhe incutiu em Braga: ‘É proibido aos soldados pensar’ e a ‘disciplina’ é não trepar às árvores como um macaco”.

“E olhe que ele tem razão, sargento Tavares! Sou bom ‘observador’ e também acho que quem deve pensar por nós é sempre quem está por cima de nós, percebe?! E isto dá-me uma ideia de estalo, que é a de militarizar o país inteiro, banir o esquerdalho, dar cabo da democracia e ir a Santa Comba desenterrar o Salazar, ou a Boliqueime ‘desenterrar’ o Cavaco Silva, ou a Massamá, que fica muito mais perto, ‘desenterrar’ o Passos Coelho. É de estrondo! Vou tentar convencer o general Riço de Carvalho a mexer-se e, se ele não se mexer, mexo-me eu! Mobilizo a tropa toda e marcho sobre Lisboa, enfio o esquerdalho outra vez em Caxias e instauro uma ditadura!”

“Mas o meu capitão já está em Lisboa, tem de sair de cá para marchar sobre cá, não será assim?!”, observou, obsequioso e perspicaz, o garboso sargento Tavares.

“Não seja tolo, sargento Tavares! Claro que vou a Braga convencer o nosso coronel Ribeiro de Souselas a desembainhar a espada, como fez o saudoso marechal Gomes da Costa. Vimos por aí abaixo, tomamos o poder e, às tantas, promovemos o coronel – que é um pavão! – a marechal e deportamo-lo, muito almofadado, para a Madeira! Portanto, sargento Tavares, fica já a saber que, a partir de agora, não tem que saber: é sempre ‘direita, volver!’. E o esquerdalho que arda num bico de Bunsen!”

“Correcto e compreendido, meu capitão! Quer o Chevaique para seu ordenança?…”

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

 

“Direita, volver!”, ordenou o capitão


O luso-checo soldado Chevaique, algo sonso mas muito ledor, lembrava-se bem de o seu bisavô confessar: “Os poucos dias que passei num asilo de doidos foram os mais belos da minha vida”.


Numa recente e delirante “ordem de serviço” catastroficamente intitulada “O nosso país a afundar”, o capitão Gonçalves, agudíssimo “observador”, indignou-se ao ver na capa da revista Time o político lusitano António Guterres, outrora “nosso primeiro” e agora, imagine-se, secretário-geral da ONU! Ordenou, por isso, que se apresentasse de imediato o garboso sargento Calisto Tavares e mandou-o ir apalpar terreno entre os soldados da sua companhia para captar o pensar deles sobre a nefanda capa – na qual devia estar ele, o heróico capitão Gonçalves, e não o outrora “nosso primeiro”. Mais disse ao sargento Tavares que inquirisse os soldados – com vista a dar resposta a um sagaz dilema do general Riço de Carvalho – sobre se porventura eles achariam “Portugal Pacífico ou Portugal Passivo?”, isto é, ou uma coisa ou outra. 

O sargento Tavares lamentou não haver verba para uma sondagem focada em toda a companhia e perguntou se bastaria interrogar só um pelotão, com 38 soldados rasos. “Nem isso, seu androide!”, retorquiu, airado, o hermínio capitão Gonçalves. “Basta interrogar só um deles, ao calhas, tirado à sorte!” E, se assim o ouviu, melhor o fez o sargento Tavares, calhando-lhe, numa tiragem à sorte, nada menos do que o soldado “pronto” Matias Chevaique, cidadão luso só de três costados, dado o quarto ser de origem checa, coisa dum bisavô chamado Chveik, cuja história mirabolante e heróica foi narrada, por escrito, em obra-prima hilariante, por um tal Jaroslav Hasek, falecido na miséria e que o Diabo tem, dado que Deus não quis nada com ele.

O luso-checo soldado Chevaique, algo sonso mas muito ledor, lembrava-se bem de o seu bisavô confessar: “Os poucos dias que passei num asilo de doidos foram os mais belos da minha vida”. E de descrever o asilo: “É uma casa onde se pode passear todo nu, uivar como um chacal, ser furioso à vontade e morder até fartar, e em tudo o que se quiser”. Melhor ainda (grande era a perspicácia ideológica!): “Há lá dentro uma tal liberdade que os socialistas nunca ousariam sonhar nada de mais belo…” Ora, estas memórias checas, do tempo da Grande Guerra, estavam muito mais entranhadas no bestunto do nosso Chevaique lusitano do que os grandes feitos do soldado Milhões nessa mesma guerra enorme. Que sonso! E que azar o do intrépido sargento Tavares ter-lhe calhado em sorte um espécime tão raro para interrogar! Interrogatório esse que começou logo bastante mal quando o astuto sargento indagou Chevaique sobre o seu pensar acerca da pífia capa da Time, tendo ele respondido assim:

“Declaro obedientemente, meu sargento, que é proibido aos soldados pensar. Isso mesmo nos disse o coronel Ribeiro de Souselas, do regimento onde estive em Braga: ‘O soldado não deve pensar. O seu superior é que pensa por ele. Quando um soldado se põe a pensar, não é um soldado, é uma espécie de civil badalhoco’. Por isso é que não penso mesmo nada, meu sargento, sobre essa capa da tal revista…”

Aqui, o sargento Tavares talhou cerce: “Tu estás a gozar comigo ou quê? Atreves-te a não responder àquilo que te pergunto? Olha que se me queixo de ti ao nosso capitão Gonçalves, o mais certo é apanhares com prisão disciplinar agravada!”

“Declaro obedientemente, meu sargento”, replicou Chevaique, “que também me lembro muito bem do que o nosso coronel Ribeiro de Souselas nos dizia sempre: ‘A disciplina, seus brutos, é necessária, pois sem ela vocês andariam a trepar às árvores como os macacos. Ora, o serviço militar faz de vocês, caterva de idiotas, membros da sociedade humana’. E olhe que é verdade, meu sargento! Imagine um parque, como por exemplo o Eduardo vii, e avistar, no topo de cada uma das árvores, um soldado sem disciplina pendurado como um macaco!? Esta propensão causa-me sempre um grande pavor! É por isso, meu sargento, que não penso nem sou macaco”.

“O que tu és é um grande macacão, um sonso, um simulador!”, berrou, fora de si, o sargento Tavares. “Ai de ti se não me disseres se achas ‘Portugal Pacífico ou Portugal Passivo’? Esborracho-te o nariz, o bestunto, o alto da ideia, meu cabrão!” Ao que o soldado Matias Chevaique, sorrindo como um bem-aventurado, respondeu:

“Declaro obedientemente, meu sargento, que sou cabrão, embora não seja casado. E tanto acho ‘Portugal Pacífico’ como ‘Portugal Passivo’, assim como eu, que também sou pacífico e passivo, meu sargento! Na tropa, sou sempre as duas coisas”.

Desalentado pela sua fracassada tentativa de pastorear rebanhos militares ao sair-lhe na rifa uma ovelha negra na sua indagação sobre a funesta capa da revista Time e acerca do dilema do general Carvalho, o sargento Tavares foi abrir-se com o capitão Gonçalves, mantendo ambos o entusiasmante diálogo que a seguir reproduzo:

“Meu capitão, declaro obedientemente que tentei extorquir do soldado Chevaique, que tem três costados portugueses e um checo, o pensar dele sobre a infame capa da Time e o sagaz dilema do general Carvalho. Mas em vão. Chevaique refugiou-se num dogma que o nosso coronel Ribeiro de Souselas lhe incutiu em Braga: ‘É proibido aos soldados pensar’ e a ‘disciplina’ é não trepar às árvores como um macaco”.

“E olhe que ele tem razão, sargento Tavares! Sou bom ‘observador’ e também acho que quem deve pensar por nós é sempre quem está por cima de nós, percebe?! E isto dá-me uma ideia de estalo, que é a de militarizar o país inteiro, banir o esquerdalho, dar cabo da democracia e ir a Santa Comba desenterrar o Salazar, ou a Boliqueime ‘desenterrar’ o Cavaco Silva, ou a Massamá, que fica muito mais perto, ‘desenterrar’ o Passos Coelho. É de estrondo! Vou tentar convencer o general Riço de Carvalho a mexer-se e, se ele não se mexer, mexo-me eu! Mobilizo a tropa toda e marcho sobre Lisboa, enfio o esquerdalho outra vez em Caxias e instauro uma ditadura!”

“Mas o meu capitão já está em Lisboa, tem de sair de cá para marchar sobre cá, não será assim?!”, observou, obsequioso e perspicaz, o garboso sargento Tavares.

“Não seja tolo, sargento Tavares! Claro que vou a Braga convencer o nosso coronel Ribeiro de Souselas a desembainhar a espada, como fez o saudoso marechal Gomes da Costa. Vimos por aí abaixo, tomamos o poder e, às tantas, promovemos o coronel – que é um pavão! – a marechal e deportamo-lo, muito almofadado, para a Madeira! Portanto, sargento Tavares, fica já a saber que, a partir de agora, não tem que saber: é sempre ‘direita, volver!’. E o esquerdalho que arda num bico de Bunsen!”

“Correcto e compreendido, meu capitão! Quer o Chevaique para seu ordenança?…”

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990