(Lições de vida e de processo penal).
Começa assim o livro de Juan Rulfo Pedro Páramo que, tendo já mais de 60 anos, continua fresco e desafiador como um corpo acabado de desabrochar: “Vim a Comala porque me disseram que vivia aqui o meu pai, um tal Pedro Páramo. Foi a minha mãe quem mo disse”. (Cito da tradução da edição recente da Cavalo de Ferro).
E ele, o filho-narrador, foi. Mas logo no início do livro, pela boca do almocreve, que afinal é seu irmão, descobre que o pai está morto há muitos anos e também acaba por apurar que esteve quase para ter outra mãe.
E depois, ao longo do livro, vai-se vendo quem foi, ou pareceu ser, ou talvez nem tenha sido, esse tal Pedro Páramo, e outros antes dele ou coevos. E o filho, que foi à sua procura, cumprindo uma promessa e guiado pela mãe – que, afinal, estava enganada (pois se até as mães se enganam…) –, também se vai vendo melhor a si mesmo. Donde a verdade é que as coisas nem sempre, para não dizer raramente, são o que parecem, ou pelo menos nunca são só o que parecem. Por um lado. E, por outro, ouvir dizer é muito perigoso como fonte de saber e de verdade – se é que esta existe ou, existindo, se for alguma vez mais do que apenas meia.
Duas boas lições de vida, entre outras, que se retiram (escavando um pouco para lá dos celebrados regionalismo e realismo mágico) deste misterioso e fascinante livro, que parece uma coisa mas não é inteiramente assim, e sempre nos deixa inquietos a cada leitura. E também duas notas importantes para o processo penal (que também é tema de lições de vida, e das grandes, muitas vezes). Uma: normalmente, e bem, o testemunho de ouvir dizer só vale se comprovado por quem disse a quem ouviu; o que está bom de ver porquê, pois quanto mais indireta a prova, mais falível, além de que quem conta um conto sempre lhe acrescenta, pelo menos, um pontinho, para já não falar no que se pode perder ou adulterar no caminho que vai de uma boca a um ouvido. Outra: há que ter extremo cuidado com as aparências, o que obriga a usar de vários filtros, pesos e contrapesos, do qual o maior de todos é uma concreta, apurada e profunda fundamentação do que se decide, tendo sempre presente que a fundamentação (para mim, a garantia suprema do processo penal) não se mede aos palmos, mede-se em concretude, clareza e frontalidade. Há quem goste de páginas e páginas de citações e considerações, eu prefiro saber e perceber porquê, tão simples quanto isso. Porque só assim tenho três garantias: primeira, que percebi e que os outros perceberam; segunda, que assim posso ou podemos aceitar ou não e talvez reagir; e, terceira e porventura mais importante, que quem decidiu pensou e ponderou de tal forma bem que sabe explicar porquê. É que decidir pode ser fácil; decidir, explicar e justificar é que pode ser difícil. Mas neste caso é na dificuldade que estão a garantia e a legitimidade. Tanto mais quanto mais levarmos em conta outra citação exemplar do livro, que nos diz que “nós somos irregulares”.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira