“O modelo a que nos referimos passa por uma valorização dos cidadãos que tenham um histórico de participação”As eleições europeias voltaram a ficar marcadas pela elevada abstenção. Quase 70% dos portugueses optaram por não votar. Foi neste contexto, e com as legislativas à porta, que o socialista Vasco Cordeiro, presidente do Governo dos Açores, lançou a ideia de criar um “contrato de cidadania” em que os cidadãos recebam benefícios estatais por votarem. A ideia tem apoios dentro do PS, mas está longe de ser consensual.
José Ribeiro e Castro, do Movimento Por Uma Democracia de Qualidade, considera que esta proposta não soluciona o problema da abstenção e poderia mesmo ter um efeito de descredibilização da democracia. “Passariam a oferecer três garrafas de vinho no ato eleitoral? Isso não são sistemas, são expedientes que não dão credibilidade à prática democrática”, diz ao i o ex-líder do CDS.
O constitucionalista Jorge Miranda também não alinha com a proposta de Vasco Cordeiro. “Quando muito, poderia encarar-se a hipótese da sanção. Estar a premiar as pessoas por cumprirem o seu dever? A Constituição diz que o direito de sufrágio é pessoal e constitui um dever cívico”, disse numa entrevista à Antena 1 Açores, na qual acrescentou que este tipo de incentivos não existem “em parte alguma do mundo”.
Dentro do PS, a proposta colhe algumas simpatias. O deputado socialista Pedro Delgado Alves considera que a criação de incentivos à participação eleitoral “é um contributo interessante e positivo” para o debate. “Não considero que seja comprar votos porque não está a tentar ter uma vantagem sobre um voto individual”, afirma.
O constitucionalista Vital Moreira também acredita que é justo beneficiar os cidadãos mais assíduos nas eleições. “Se esta ideia for praticável – e ela não é propriamente inédita –, não se vê porque é que, se os partidos são financiados por cada voto que obtêm, os próprios cidadãos eleitores não deveriam ser premiados também”, escreve, no blogue Causa Nossa, o constitucionalista e ex-deputado do PS.
A proposta divide os políticos, mas também não é consensual entre os especialistas. O investigador António Costa Pinto garante que esta é uma ideia interessante e que “não tem nada que ver com a compra de voto, porque é extensiva a toda a sociedade. Situa-se no polo oposto do voto obrigatório”.
Já Adelino Maltez classifica este “contrato de cidadania” como uma forma de instituir o voto obrigatório. “Ou há voto obrigatório ou não. Esse tipo de proposta não vai de encontro ao direito das pessoas de se absterem. Seria sempre uma forma de voto obrigatório porque sancionaria quem decidisse não ir votar. A abstenção é uma figura política, e os partidos e deputados deveriam era estar a pensar em analisar a abstenção, e não a tentarem criar um sistema de voto obrigatório”, declarou ao i o politólogo.
Direito ou dever?
Existem vários países no mundo que adotaram o sistema do voto obrigatório. A questão sobre a adoção deste modelo centra-se em se votar é um direito, que se pode ou não exercer, ou se é um dever que é de cumprimento obrigatório. Resume-se numa luta entre o dever cívico e a liberdade individual. No mundo inteiro existem apenas 22 países que se regem por este modelo de participação eleitoral. Brasil, Argentina, Bélgica ou Luxemburgo são algumas das nações onde se pratica o voto obrigatório.
Por norma, estão dispensados desta obrigação todos os cidadão com menos de 18 anos e mais de 70. Sublinhe-se que as pessoas continuam a ser livres de votar nulo ou em branco. As sanções que advêm da não participação no ato eleitoral são geralmente aplicadas através de coimas, com valores mais ou menos avultados dependendo do país.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considera, desde 1971, que o voto obrigatório não é antidemocrático nem viola a liberdade de pensamento.