O Estado impiedoso


O SNS enfrenta uma terrível provação.


Vítima de um Governo cuja opção, tão deliberada quão perniciosa, consistiu em abdicar de investir em equipamentos, ignorar o crescimento brutal de listas de espera, render-se a indicadores de oferta assistencial que colocam em causa a dignidade humana e o mais elementar acesso à saúde, sofre o risco, como Correia de Campos assinalou, de se tornar uma caricatura por comparação ao que aos seus pais fundadores sonharam.

E são aqueles cujo verbo escorreito e rotunda retórica ecoam a favor do SNS que assumem o paradoxal, embora não inesperado papel, de o conduzirem a uma crise sem precedentes, a um clima de quase guerra civil em que os episódios grotescos de falta de assistência se amontoam e deixam de ser a exceção, e se transformam tristemente na regra.

Esta falência penaliza sempre os mais pobres, os mais frágeis, os mais idosos.

De que serve alguém auferir mais dez ou 15 euros por mês quando o seu bem mais precioso – a saúde – é posto de lado por uma consulta que, em muitos casos, demasiados casos, demora um ano ou mais a ter lugar?

Ou por uma cirurgia que não respeita os tempos máximos garantidos, o que se paga em forma de sofrimento e em vidas, num quadro que todos os dias se repete e agrava, a todos repugna, mas cuja repetição incessante o torna o novo normal?

E esses, os mais frágeis, os mais pobres, não podem acorrer ao privado, não se podem salvar do dilúvio e, em silêncio, são espoliados dos seus direitos, vilipendiados na sua dignidade, derrotados na sua luta sem sequer poderem combater por si ou pelos seus.

Que dignidade humana resiste, que esboço de humanidade se perpetua quando, no Algarve, doentes com cancro, já diagnosticados, aguardam intermináveis meses para poderem obter os resultados das análises que fizeram e iniciar o tratamento, enquanto a doença implacável se espalha, indiferente às mais cruéis burocracias, à falta de bom senso e ao crime que é abandonar as pessoas deste modo?

Por vezes, o Estado pode ser quase tão impiedoso quanto a doença.

Que dignidade humana resiste quando, já prostrados, os responsáveis reconhecem que durante meses o equipamento de radioterapia do São João se avariava quase diariamente, seguramente adiando milhares de tratamentos e diminuindo a esperança de vida desses doentes?

Ou quando, nas farmácias dos hospitais, os medicamentos para doentes crónicos entram em rutura, a preparação da quimioterapia já não se faz e o IPO – um pilar do SNS – soçobra perante a falta de investimento e a incapacidade de resposta?

Este é o retrato fiel, porém sinistro, da cruel desumanização do SNS que arrasta famílias inteiras para gritos de desespero e de dor por não poderem dar aos seus um tratamento condigno, nem na vida nem na morte.

Quem o diz:

O Tribunal de Contas, quando denuncia a degradação do acesso dos doentes às consultas e cirurgias do SNS!

A Entidade Reguladora da Saúde, que ainda este mês divulgou um relatório no qual conclui que os tempos de espera para consultas e cirurgias no SNS não pararam de aumentar!

Aliás, o próprio Governo não tem tido alternativa a reconhecer este mesmo aumento nos tempos de espera nas consultas e cirurgias, como o fez nos últimos relatórios de acesso aos cuidados de saúde no SNS.

A ideologia vence a realidade na AR, mas perde lá fora.

Porque a realidade, na AR, é uma discussão, com logros e enganos, cartas e encenações, sobre os princípios do SNS em que as forças políticas que dão suporte ao Governo se entretêm para que não tenham de dizer nada sobre o que se passa lá fora.

Lá fora, é a vida real. Não interessa se público ou privado, interessa é servir, curar, resolver, progredir, colocar o doente no centro das decisões.

Ao fim de quatro anos, a marca da governação do Partido Socialista no setor da saúde é a degradação do SNS.

Aumento dos tempos e das listas de espera para consultas e cirurgias e mesmo exames médicos, acentuada quebra do investimento público no SNS, colapso no acesso às urgências hospitalares.

Congelamento da reforma dos cuidados primários, com mais de 750 mil utentes do SNS sem médico de família, quando o primeiro-ministro tinha dito, aqui mesmo, que em 2017 todos os portugueses teriam médico de família

Mas a degradação do SNS vê-se também pelo insuficiente crescimento das redes de cuidados continuados e paliativos, e pelos elevadíssimos tempos de espera dos doentes no acesso a essas redes de cuidados…

Degradação bem visível no aumento da instabilidade entre os profissionais do SNS, que trabalham em condições cada vez mais difíceis.

O Serviço Nacional de Saúde precisa de mais financiamento, de maior atenção e cuidado, as instituições prestadoras de cuidados de saúde precisam de mais autonomia e os portugueses merecem um sistema de saúde que esteja verdadeiramente ao seu serviço, principalmente daqueles que mais precisam!

O SNS deve ser um sistema de saúde inclusivo, completo, em que as pessoas sejam verdadeiramente o centro das políticas de saúde.

 

Deputado do PSD

Escreve à quinta-feira

Excerto de intervenção na Assembleia da República